HOMEM E GRAVURA Saulo Ramos e sua imagem desenhada po

Candidato a presidente da República em 1960, Jânio Quadros viajou a Cuba, país no qual uma recém-vitoriosa revolução empolgava corações e mentes na América Latina. No jantar que o embaixador brasileiro Vasco Leitão da Cunha ofereceu em homenagem a Fidel Castro e a Che Guevara, o líder cubano deixou sua pistola na entrada da embaixada. Na saída, ao perceber que haviam lhe roubado a arma, Fidel esbravejou e xingou a comitiva brasileira. Tratava-se, dizia el comandante, de uma relíquia dos tempos de Sierra Maestra. A pistola foi devolvida, mas o autor do furto nunca se apresentou. Fidel, no entanto, blefara, pois a arma fora um presente do então embaixador soviético em Havana, Anastas Mikoyan, com dedicatória e tudo. Quem testemunhou esse evento insólito também observou, com perspicácia, que Fidel nutria profunda inveja pelo Che. Essa e outras histórias saborosíssimas são contadas no livro Código da vida – fantástico litígio judicial de uma família: drama, suspense, surpresas e mistério (Planeta, 470 págs.), do jurista Saulo Ramos, ex-consultor-geral da República e ex-ministro da Justiça do governo José Sarney.

O livro tem como fio condutor um caso real, embora romanceado. Trata-se de um homem cuja esposa o acusa de praticar atos obscenos contra os filhos menores e, por isso, ela entrou com uma ação judicial para impedi-lo de ver as crianças. O pai procurou um advogado, que se recusou a defendê-lo depois de ouvir as gravações onde os filhos contavam histórias pornográficas que o pai os teria forçado a protagonizar. Desesperado, ele foi ao escritório de Saulo Ramos, ameaçando se suicidar caso o advogado não aceitasse defendê-lo. Esse é o mote para o início da narrativa, estruturada como um thriller vigoroso, entremeado a fatos e personagens da vida pública brasileira dos últimos 50 anos, temperado com argutas observações políticas.Os bastidores revelados por Saulo permitem novos enfoques sobre episódios bastante conhecidos, como a condecoração de Che por Jânio Quadros, concedida às vésperas do caos que ele provocaria no País com sua renúncia à Presidência. Integrante da delegação brasileira à conferência de Punta del Este da OEA, Saulo foi informado pelo ministro da Fazenda, Clemente Mariani, de que Jânio pretendia condecorar o ministro cubano com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Mariani temia a ira dos EUA. Segundo Saulo, a lógica política por trás do tresloucado gesto seria desvendada pelo embaixador Sérgio Frazão. "O presidente Kennedy vai adorar. Ele está lutando no Congresso para aprovar verbas destinadas a um programa de ajuda à América Latina (a Aliança para o Progresso). Esse gesto vai assustar os congressistas contrários a Kennedy e a verba será aprovada. Ali, as coisas funcionam na base do medo", disse Frazão.

Outro episódio marcante foi a discussão sobre quem deveria assumir a Presidência da República em março de 1985 com a doença de Tancredo Neves, o presidente eleito. Uma corrente de políticos e juristas achava que o lugar deveria ser ocupado por Ulysses Guimarães, presidente da Câmara. Os militares estavam alvoroçados. No entanto, diz Saulo, a resistência mais tenaz à posse de Sarney veio de seu velho amigo Mário Covas, futuro governador de São Paulo. Saulo o lembrou de um episódio ocorrido em 1961. Na época, Covas chegou em segundo lugar na disputa pela Prefeitura da cidade paulista de Santos. Com a morte súbita do prefeito eleito, Covas entrou na Justiça reivindicando o cargo, mas ela entendeu que o vice-prefeito eleito deveria assumir. "Já pensou algum advogado soprar para a imprensa que a jurisprudência foi firmada num caso seu, e você continua a berrar que o vice não tem direito à posse?", perguntou Saulo a Covas. "Está bem. Vou falar com o Ulysses e acabamos com essa encrenca."

Saulo Ramos nasceu em Brodowski, em São Paulo, a mesma cidade do pintor Cândido Portinari – que, aliás, o presenteou em 1953 com um retrato à crayon com dedicatória. De origem modesta, dedicou-se precocemente à poesia, o que o fez cair nas graças de Guilherme de Almeida, o "príncipe dos poetas brasileiros". Ele o apresentou, ainda jovem estudante de direito, ao famoso jurista Vicente Rao, dono de um prestigioso escritório de advogacia. Ainda assim, Saulo diz que oscilaria entre o jornalismo e a advocacia até 1964, quando a ditadura militar o convenceu a se dedicar exclusivamente ao direito. Código da Vida revela o jurista consagrado transformado num narrador arguto e refinado.