O ?Tremendão? da jovem guarda faz o inventáriode sua vida, da infância pobre aos tempos deglória e aos dias atuais de calvície

O cantor e compositor carioca Erasmo Carlos, 65 anos, que abalou as estruturas do conservadorismo na década de 60 capitaneando ao lado de Roberto Carlos o movimento musical jovem guarda, divide-se hoje entre o seu “mundo interior”, a família (três filhos e quatro netos) e o trabalho – “tranqüilo”, sem os “sobressaltos da juventude” e dos tempos em que era conhecido como o “Tremendão”. Essa tranqüilidade de cabeça e o fato de já se terem passado 11 anos do suicídio de sua esposa Narinha, um de seus momentos mais dolorosos, foram determinantes para que ele se propusesse a fazer nessa entrevista um verdadeiro inventário de sua vida. Erasmo namorou ou não namorou Wanderléa, a musa “Ternurinha” da jovem guarda? Teve ou não um caso com a transexual Roberta Close? É verdade que a esposa falecida de Roberto Carlos, Maria Rita, não gostava dele? Como eram as fãs de antigamente e como elas se comportam agora? Por que Narinha se suicidou? Como a música impediu que ele enveredasse pela criminalidade? O que acha do funk e do rap? Tudo isso está nessa entrevista – e estará também no bem-humorado livro que Erasmo está escrevendo, de contos e crônicas. Com mais de 20 discos gravados desde 1960, quando lançou seu primeiro LP com o grupo Snakes, ele coleciona prêmios, filmes e até fotonovelas. Sobre o livro, Erasmo adianta que nele se vingará da “desconfortável calvície e dos cabelos grisalhos”.

ISTOÉ – A calvície o incomoda?
Celina Côrtes

É a minha menstruação, que só agora consegui encarar numa boa. A partir dos 40, comecei a disfarçar com pilot preto e depois fiquei dez anos passando rolha queimada. Um dia fui fazer um show em Corumbá e não tinha rolha em lugar nenhum. Meu ajudante foi a um bar, comprou um vinho, deixou a garrafa e levou a rolha. O vendedor não entendeu nada.

ISTOÉ – Como surgiu a jovem guarda?
Celina Côrtes

Foi o início da popularidade, uma explosão, para a qual eu não estava preparado. Tinha só 25 anos. Foram três anos de sucesso no programa da TV Record, com Roberto Carlos e Wanderléa. A jovem guarda surgiu porque havia cabeludos fazendo sucesso, inspirados em Elvis Presley. Sempre quis imitá-lo, o problema é que eu tinha de alisar o cabelo para parecer mais com ele. Usava um produto chamado timbolina. Tim Maia também usava e o cara que fazia tinha o apelido de Timbó. Era um henê que feria o couro cabeludo. Fazíamos esse sacrifício só para ficar parecidos com Elvis. E eu também deixava a costeleta.

ISTOÉ – Rolou alguma coisa entre você e a Wanderléa?
Celina Côrtes

Não, não houve nada.

ISTOÉ – Ninguém a paquerava?
Celina Côrtes

Não. As meninas da jovem guarda eram como misses, havia um policiamento grande dos pais. Eram intocáveis, puras e inocentes. Não havia a sacanagem que as pessoas pensavam. Era tudo muito família.

ISTOÉ – A jovem guarda foi tachada de alienada porque não se engajou na luta contra a ditadura.
Celina Côrtes

A juventude engajada estudava, fazia faculdade. Nós não, ninguém tinha estudo. Lá em casa só entrava o Jornal dos Sports. Éramos pobres, preocupados em ter um teto, arrumar comida, não havia tempo para nos engajarmos. Isso era para os bem-nascidos, os bem informados, que não tinham outro tipo de responsabilidade.

ISTOÉ – Você passou momentos barra-pesada?
Celina Côrtes

Eu escapei de ir para o crime porque a música me tirou dessa. A minha vida era de pobre, origem barra-pesada. O rock me aceitou, a bossa nova não, era coisa de rico. Eu e Roberto Carlos não tínhamos acesso, éramos de periferia. O rock era um movimento popular. Nossa contribuição na luta contra a ditadura foi lutar pela liberdade sexual e usar o cabelo comprido. Nosso desejo de liberdade transparecia, tanto que também fomos perseguidos pela ditadura.

ISTOÉ – Você teve uma infância pobre. O que fazia seu pai?
Celina Côrtes

Só o conheci aos 23 anos. Me diziam que ele tinha morrido antes de eu nascer. Era delegado de polícia, em Salvador. Minha mãe foi pai e mãe. Ela morreu há dois anos. Quando fiquei famoso, ele me viu na televisão e veio me procurar. Não aprendi a sentir amor por meu pai, embora ele me cobrasse esse afeto.

ISTOÉ – Como você lidava com as fãs?
Celina Côrtes

Naquela época as mulheres eram muito contidas. Havia diversas batalhas a ser vencidas para se chegar ao corpo, como a anágua, o corpete e o
sutiã. Havia diversas etapas entre o desejo e o corpo. Elas tinham desejo, mas era difícil exercê-lo, pelas circunstâncias. Passei por todas as loucuras, fiz tudo o que tinha direito. As fãs se escondiam nos hotéis, até debaixo das camas. Mas eram volúveis, passavam de ídolo para ídolo. É um momento que dura até hoje. Logicamente, a tática mudou. Hoje são mais inteligentes. Antes, mulher que se propunha gritava e se projetava no meio da multidão. Hoje elas se hospedam no mesmo hotel, são mais discretas.

ISTOÉ – Quantos anos você foi casado com Narinha?
Celina Côrtes

Casado mesmo, foram 15 anos. Tivemos duas separações. Passamos um tempo longe, voltamos, nos separamos de novo e vivemos juntos até ela morrer.

ISTOÉ – Você tem idéia do motivo que a levou ao suicídio?
Celina Côrtes

É difícil saber o que vai na cabeça das pessoas. Narinha nunca demonstrou nada que pudesse levar a essa determinação de morrer.

ISTOÉ – E seus filhos?
Celina Côrtes

Até hoje, nem eu nem meus filhos temos idéia do que aconteceu. Não temos idéia do motivo que a levou ao suicídio. Foi um golpe grande, uma surpresa maior ainda.

ISTOÉ – Depois disso, você nunca mais se casou.
Celina Côrtes

Nunca mais. Mas namoro bastante. Por enquanto, não pretendo me casar. Já me acostumei comigo mesmo. Para eu ter uma pessoa, é como se ela tivesse de me substituir. Mas não digo que não vai dar, só que é difícil.

ISTOÉ – É verdade que você e Roberto Carlos só se encontram uma vez por ano?
Celina Côrtes

Atualmente, nem isso. A necessidade é que faz o encontro. A gente não se freqüenta, só se encontra quando é preciso, embora sejamos muito amigos. Nenhum de nós tem gravado. Houve tempos em que nos víamos mais. Quando ambos éramos casados, saíamos juntos, viajávamos. Essa época passou. Hoje cada um tem sua vida, seus negócios. Sempre arrumam uma história de que estamos brigados. É mentira. Por mais que eu quisesse brigar com ele, não teria um motivo, porque ele é um cara maravilhoso. Só me fez o bem.

ISTOÉ – Mas parece que a Maria Rita (esposa falecida de Roberto Carlos) não gostava muito de você e isso os teria afastado.
Celina Côrtes

Não foi nada disso. Ela era uma pessoa maravilhosa comigo, assim como as outras mulheres de Roberto. Depois que Maria Rita morreu, ele me explicou que não queria dividir música romântica com mais ninguém. Não houve nenhuma briga.

ISTOÉ – Até onde foi sua experiência com drogas na sua fase hippie?
Celina Côrtes

Nunca usei drogas injetáveis. Nessa época, em 1972, já casado, fui para a Holanda, França e Inglaterra, e lá consumi drogas, maconha, cocaína, haxixe e só. Minha experiência ficou aí. Não aconselho a ninguém, porque é muito bom a gente não usar drogas.

ISTOÉ – Você chegou a se definir como um bebedor social exagerado. Seria um sinônimo de alcoolista?
Celina Côrtes

Eu bebia muito, quando tinha muitos compromissos. Hoje diminuí os compromissos e bebo menos. Fumo muito, não consegui largar o cigarro.

ISTOÉ – Como foi o episódio em que você foi alvejado por latas no Rock in Rio?
Celina Côrtes

O Rock in Rio foi um divisor de águas. Era 1985 e ninguém sabia que existiam tribos. Me botaram junto com o Iron Maiden e com os papas da música
do demônio. Ney Matogrosso e Rita Lee também sofreram. Depois fui transferido para uma noite mais tranqüila. Aí foi legal e todos aprenderam que
as tribos tinham de ser separadas.

ISTOÉ – Como foi a história da Rolls Royce cancelar a garantia vitalícia da empresa quando soube que você tinha comprado um carro dessa marca?
Celina Côrtes

Foi um falso boato. Comprei porque todos os artistas, como Aguinaldo Timóteo, Wilson Simonal e Roberto Carlos, tinham carrões maravilhosos, americanos e novos. Um dia apareceu um Rolls-Royce lindo, maravilhoso, que já tinha sido de Ademar de Barros (ex-governador de São Paulo). Fiz um marketing de oito meses, emprestei para as misses e amigos passearem. Nessa época eu morava em São Paulo e aquilo incomodava a burguesia paulista, porque eu e o motorista usávamos chapéu de caubói e meu cachorro andava na janela. Daí criaram o boato, mas era mentira.

ISTOÉ – O que aconteceu entre você e a Roberta Close? Houve um caso?
Celina Côrtes

Fiz uma música falando de um fotógrafo que viu uma mulher na praia e descobriu que ela não era mulher. Fiquei muito tempo com a música inacabada e pensando: o que teria levado o fotógrafo, ao contrário do resto da praia, a saber que não era uma mulher? O final bolei depois. Ele aproximou o zoom da máquina e deu um close no gogó e nos pés dela. Então viu pela lente que era um homem. Por coincidência, a Roberta Close apareceu naquela época, eu ainda não a conhecia. Participei do primeiro clipe de música feito no Brasil e resolveram me juntar com Roberta Close, porque tinha close na música. Fizemos o clipe, que foi quando a conheci. Saiu na capa de tudo que foi revista e virou boato na imprensa marrom. Só a vi na gravação do clipe.

ISTOÉ – O que você acha do funk e do rap?
Celina Côrtes

O funk carioca é um divertimento. Minhas preferências são a bossa nova e o rock. Mas sou obrigado a ouvir as novidades. É um repertório que não me satisfaz musicalmente. O rap é um discurso, tanto em português quanto em inglês, que eu não entendo. Não quero aprender inglês, mas ouvir música. É um discurso sério, engajado, mas não pode ser chamado de música.

ISTOÉ – Como foi seu convívio com Renato Russo e Marisa Monte?
Celina Côrtes

Sou fã de ambos. Achava o Renato agressivo e revoltado. Poderia até ser, mas comigo era de uma doçura incrível. Ao gravar com Marisa, em 2001, pensei que ia chegar uma moça tímida. Não, ela veio de guitarra em punho e foi pegando os acordes. É poderosa.

ISTOÉ – Em quem você vai votar para presidente da República?
Celina Côrtes

Sou contra o voto obrigatório. Só vou votar para não fortalecer o governo Lula. Nunca votei no Lula. Para mim, voto é um direito, não um dever.

ISTOÉ – Por que resolveu escrever um livro?
Celina Côrtes

Há muitos anos tenho essa vontade. São contos, crônicas, histórias de vida e, se possível, tudo com humor, mesmo que o fato não favoreça o riso. Perguntei ao Fernando Sabino o que fazer para escrever e ele me disse: comece.

ISTOÉ – Você começou.
Celina Côrtes

Já estou no 15º conto, com umas 30 páginas escritas. Como sou muito brincalhão, já tenho meu slogan: Erasmo rumo à Academia Brasileira de Letras.