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BAILE NO RIO
Os músicos em ação com Severino Araújo à frente, em 2004

Abordo de um avião Constellation da extinta Pan Air, os jovens instrumentistas da Orquestra Tabajara, liderada pelo maestro pernambucano Severino Araújo, desembarcaram pela primeira vez em Paris em 1952. Eles viajaram a convite do então senador brasileiro Assis Chateaubriand, que, engajado em mostrar à Europa o “verdadeiro Brasil”, levava o grupo musical para tocar em uma festa oferecida pelo badalado estilista de alta-costura Jacques Fath (1912-1954). A luxuosa comemoração ocorreria no castelo de Fath, nos arredores da capital francesa, e tinha o objetivo de divulgar a qualidade do algodão brasileiro aos profissionais do mundo da moda. Os músicos da Orquestra Tabajara tocaram para uma plateia repleta de celebridades – entre os presentes figuravam os também estilistas Coco Chanel e Christian Dior, além de astros do cinema, como Clark Gable, Orson Welles e Ginger Rogers. Após a entrada triunfal dos convidados ilustres – todos montados em corcéis negros –, os cantores Jamelão, Ademilde Fonseca e Elizeth Cardoso subiram ao palco e abriram a festa com o frevo “Relembrando o Norte”, à frente da big band regida por Severino. Essa passagem faz parte dos anos dourados da mais tradicional – e mais longeva – orquestra brasileira, batizada Tabajara em homenagem à etnia indígena que lutou contra a invasão dos holandeses no Nordeste do País. “Tudo em João Pessoa é Tabajara por causa dos índios”, disse certa vez Severino Araújo. A banda, responsável pela trilha sonora de um país que já foi mais delicado, está comemorando 77 anos de existência e sua história é rememorada no livro “Orquestra Tabajara de Severino Araújo – a Vida Musical da Eterna Big Band Brasileira” (Companhia Editora Nacional), do escritor paulista Carlos Coraúcci. Como parte da comemoração, nos dias 29 e 30, ela se apresenta no Canecão, no Rio de Janeiro.

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RECORDE
Em oito décadas,a Tabajara fez mais de
14 mil shows e gravou 300 discos

Nascido no município pernambucano de Limoeiro, filho do Mestre Cazuzinha, Severino compôs sua primeira música aos 12 anos. Aos 21, assumiu a regência do grupo musical Tabajara. “Como me dedicava ao jazz, percebi que as orquestras americanas eram maiores, tinham quatro saxofones, três trompetes e dois trombones. Adaptei isso à Tabajara”, diz ele sobre a orquestra que embalaria romances nas altas rodas da antiga capital federal nas décadas de 1950. No repertório, tangos e boleros clássicos como “Perfidia”, “Besame Mucho”, “Adiós” e “El Dia Que Me Quieras”. Sempre renovando seu naipe de instrumentistas, a orquestra formou talentosos artistas, entre eles os trombonistas Norato e Macaxeira, os saxofonistas Zé Bodega e Ximbinho, o trompetista Geraldo Medeiros e o grande Pixinguinha. Entre os músicos de carreira mais recente, aparece o clarinetista Paulo Moura, ex-Tabajara, para quem foi Severino Araújo quem trouxe modernidade para a música brasileira: “Seu arranjo, mais agressivo, mudou a sonoridade arredondada que dominou o final dos anos 1940.”

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PARIS
A big band no avião com Chateaubriand (à esq., no centro)
e no castelo do estilista Fath

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Em oito décadas de carreira, o grupo viajou por todo o Brasil, marcou época na Rádio Tupi de São Paulo (e também na tevê do mesmo grupo, quando ela surgiu) e fez mais de 14 mil apresentações, diversas delas no Copacabana Palace, pointing famoso da boêmia carioca. Participou também de filmes nacionais ao lado de Dircinha e Linda Batista e gravou cerca de 300 discos – um deles é considerado um marco na música brasileira: aquele gravado com o sambista Jamelão, em homenagem ao compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues. Mais recentemente, a big band integrou a famosa minissérie global “Anos Dourados”. A formação da orquestra tem hoje 22 músicos e a regência é do maestro Jaime Araújo, um dos cinco irmãos do genial maestro e instrumentista pernambucano Severino, cujo extenso repertório inclui o clássico do chorinho “Espinha de Bacalhau”, entre muitos sambas e frevos. Ele está com 93 anos de idade e há quatro se afastou, por orientação médica, do comando da Tabajara. Sua biografia confunde-se com a trajetória do grupo, da própria música brasileira e também do País. Assim, ao retratar sua vida à frente da trupe afinada, Carlos Coraúcci faz também uma saborosa crônica de nossa história política e cultural.

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NAIPE DE OURO
A linha de frente da orquestra com o maestro
Severino Araújo (no centro), em 1947

 

Leia trecho do capítulo “Meninos do Engenho” do livro “Orquestra Tabajara de Severino Araújo – a Vida Musical da Eterna Big Band Brasileira”, de Carlos Coraúcci

A cana dá o açúcar; a música, o doce

Quando Martim Afonso de Souza trouxe para o Brasil as primeiras mudas de cana-de-açúcar, por volta de 1530, direto da Ilha da Madeira, sua intenção era fixar por aqui um meio lucrativo de explorar as terras recém-apossadas pelos portugueses. Ele também foi o responsável pela instalação do primeiro engenho, em 1533, em São Vicente, no litoral paulista.
Mas foi em solo nordestino que a planta adaptou-se melhor, pois grande parte do relevo do Nordeste é constituído por massapê, solo fértil e ideal para o plantio de cana. Com isso os estados da Bahia e de Pernambuco tornaram-se os maiores produtores de cana-de-açúcar do país na época. No sertão pernambucano, os municípios de Pau D’Alho, Tracunhaém, Carpina e Limoeiro formavam o “cinturão do açúcar”, com grande concentração de engenhos e extensas áreas plantadas.
Um grupo de capitalistas ingleses resolveu então enveredar por terras brasileiras. Escolheram o Nordeste, por motivos óbvios, e, inspirados no nome da estrada de ferro que ligava Londres a Liverpool, The Great Western Railway Company, criaram a Great Western of Brazil Railway Company Limited, que logo ficaria conhecida no país como “Greitueste”.
Em 1873 ela foi autorizada a funcionar no Império do Brasil, e dois anos depois os investidores conseguiram a concessão para construir a estrada de ferro que ligaria Recife a Limoeiro. O trecho foi concluído em 1882 com muita festa e discursos eufóricos de coronéis e políticos da região. A construção da ferrovia trouxe avanços e progressos para Limoeiro, até então pacata e humilde. Somente onze anos mais tarde a cidade se tornaria município autônomo, conseguindo em 6 de abril de 1893 sua emancipação política.
Nas redondezas de Limoeiro, na zona rural, o pacato vilarejo de Cedro abrigava poucas casas, a maioria de barro, e era o caminho para uma das propriedades mais faladas do lugar: o Engenho São José. Seu dono, José Epifânio de Araújo Pereira, como muitos outros “senhores de engenho”, comprara a patente de “coronel” da Guarda Nacional, uma força civil auxiliar ao Exército, organizada durante o período regencial para servir de “sentinela da Constituição jurada”. José Epifânio ficou conhecido na região como “Coroné Zé Guéde”, um austero e genioso proprietário de terras.
Como em toda história em que se destaca a figura do suserano, os vassalos também aparecem e, aos poucos, começam a fazer parte do roteiro.
E na saga do “Coroné Zé Guéde” não foi diferente. Uma cabocla, filha de um cortador de cana, seu funcionário, mexeu com seus sentimentos.
A mestiça Ana Maria da Conceição, com apenas quinze anos de idade, cabelos lisos e pele acobreada, conquistou o coração do coronel. O senhor de engenho passa então a ter dois lares, a sua tradicional casa-grande e outro cantinho com seu novo amor. Em 1898 nascia a primogênita dos quatro filhos do casal, a menina Amélia de Oliveira – que teria sua vida ligada não ao mundo dos engenhos, mas da música.
Nessa época, na virada do século XIX para o século XX, no gosto musical dos brasileiros do Norte e Nordeste, em capitais como Salvador e Recife, ainda prevalecia a influência da modinha e do lundu, enquanto o Rio de Janeiro já estava “contaminado” pelo choro. Com vasta variedade de ritmos, tais como a valsa, os sambas raiados e, notadamente, o já citado choro, a música brasileira do começo do século ainda não havia sido registrada em nenhuma gravação sonora. Essa “ousadia” caberia a um imigrante tcheco de origem judaica chamado Frederico Figner.
Em 1889, doze anos após ser inventado por Thomas Edison, o fonógrafo já fazia parte da vida de Figner, em San Antonio, no Texas, onde residia desde 1882. Em agosto de 1891, Figner saiu de Nova York em um navio cargueiro e doze dias depois aportava em Belém do Pará, com seu fonógrafo debaixo do braço. Após muitas exibições do “aparelho”, para artistas, advogados e pessoas influentes da capital paraense e diante da euforia e entusiasmo de todos, o imigrante começou a vislumbrar uma oportunidade de lucrar com o negócio. No hotel em que se hospedara, começou a fazer sessões diárias exibindo seu “troféu”. No final do primeiro mês, 4 mil pessoas, ao preço de mil réis cada uma, fizeram a alegria do exibidor e se surpreenderam com a máquina falante. Entusiasmado, Figner pôs o “pé na estrada” e saiu pelo Norte e Nordeste fazendo demonstrações da sua “geringonça”. O sucesso foi tanto que o inevitável aconteceu: veio bater no Rio de Janeiro em abril de 1892. Ficou um tempo por lá, andou pelo interior paulista e logo voltou para a Europa para então, anos depois, retornar ao Brasil e se fixar em definitivo no mesmo Rio de Janeiro com uma loja de importação de “artigos e materiais falantes”.
Figner não anunciava em seus catálogos nada que não fosse ligado à novidade sonora. No ano de 1900, na Rua do Ouvidor nº 107, Figner fixou o endereço da CASA EDISON – “IMPORTADOR DE PHONÓGRAPHOS, GRAMOPHONES E NOVIDADES AMERICANAS”. No ano de 1902, a Casa Edison tornou-se a primeira empresa de gravações sonoras no Brasil. Elas eram feitas em cilindros de cera marrom, cujos fabricantes guardavam o segredo de manufatura a sete chaves. Basicamente, a fórmula, altamente secreta e valorizada, era ácido esteárico (12 libras), soda cáustica (1 libra), cerasim ou cera de parafina (1 libra) e óxido de alumínio (1 onça). Os fonógrafos, com velocidade estabelecida em 160 voltas por minuto, reproduziam o som por meio de agulhas de safira, rubi ou diamante, dependendo do tipo de cilindro utilizado. A música agradecia este início de comercialização.
Nesse ano de 1902, Ernesto Nazareth completara 39 anos de idade; Chiquinha Gonzaga, com seus 55, compusera três anos antes Ô, abre alas, primeira marcha de carnaval de que se tem notícia; e Alfredo da Rocha Viana Filho, o fenômeno “Pixinguinha”, iria fazer em 23 de abril seus cinco primeiros anos de vida.