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Esta manhã, sentado na minha pequena sala, entre livros, longe do mar que bate forte diante do edifício onde trabalho na praia de Copacabana, comecei a falar comigo mesmo, ou melhor, com este ser oculto que dentro de nós vive a nos criticar ou louvar pela vida afora.

Hoje o diálogo se iniciou, ele a me dizer: “Foge, Oscar, dessa conversa de centenário. É ridícula, não há nenhuma razão para isso… O bom foi o passado, nós a brincar e rir com os amigos como se a vida fosse um simples passeio… E explica, Oscar, aos que insistem em festejar o seu centenário, que você tem apenas 60 anos e pode fazer tudo o que fazia nessa idade – e eles terão de aceitar o argumento indiscutível.” Lembro que achei graça, mas adotei a sugestão que todos vão escutar, a sorrir complacentes.

Gosto da companhia deste velho amigo, de com ele rir ou chorar pela vida afora, neste mundo cheio de surpresas, de miséria, violência, difícil de modificar. De atender os que aparecem, sem neles procurar defeito, certo de que em todos existe um lado bom. E o meu amigo logo intervém: “Está certo, Oscar. Lênin já dizia que 10% de qualidades já seriam suficientes. O importante é ser fraternal, ter prazer em ajudar os outros.”

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Nos últimos tempos, ando muito ocupado com a imprensa, com os jornalistas que me procuram no escritório toda manhã para saber o que faço, informar-se sobre os meus últimos projetos, etc. E levo logo a conversa para os problemas da vida, dizendo-lhes que a vida é mais importante que a arquitetura. E muitas vezes, para tentar conhecê-los melhor, argumento que, quando vejo na rua um grupo de jovens a protestar contra a miséria, penso ser o trabalho deles mais importante que o meu.

Com freqüência, percebo que eles se espantam um pouco com o que falo, interessados que estão na minha arquitetura. Lembro-lhes como a arquitetura é injusta, só servindo aos poderosos, que para os mais pobres ela não existe, a vê-la de longe, de seus míseros barracos de madeira.

E, pouco a pouco, eles vão ouvindo a minha fala tão diferente do que esperavam ouvir. E a maioria – gente jovem – acaba se interessando pelo que digo, uma conversa que de um arquiteto não ouvira antes.

Sinto que o meu sósia, velho comunista, escuta a minha conversa satisfeito. E é para agradá-lo que não raro procuro lembrar a nossa atuação no PCB, os grandes comícios a que assistíamos, a luta pelo “Petróleo é nosso” de que participávamos, e Prestes, valente, incorruptível. Saudoso como eu daqueles bons tempos, ele me interrompe: “Lembra, Oscar, o dia em que a polícia atirava para o ar e nós corríamos, à frente da multidão, entrando num café onde ficamos até o tiroteio acabar?” “Lembro… recordo que o João Saldanha e o nosso companheiro Duprat estavam a nosso lado – este último a nos dizer, ofegante: ‘Vou parar de fumar para correr em comício.’” Ah, os velhos camaradas, como eram bons! Como pensavam em melhorar este país!

E ele prontamente intervém, mais radical: “Agora, Oscar, temos de ser realistas. O império de Bush não nos esqueceu, nesta ânsia de dominar o mundo… A Amazônia está ameaçada. É terra nossa, que temos de defender.”

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Meu amigo tem razão. Mas não acompanho o seu desespero: Lula é nacionalista e os nossos irmãos militares trazem a pátria dentro do peito. Ele ri e me indaga: “Foi por isso que você pintou de verde e amarelo o interior do Teatro Popular em Niterói?” “Foi” – disse-lhe. “O Brasil e toda a América Latina estão ameaçados.” “E o que fazer?” – ele me pergunta. “Acabar com o especialista – transformar o jovem que sai da escola sem ler um livro, preocupado apenas com os assuntos de sua profissão. Leválo à leitura, fazê-lo entender melhor este mundo injusto que devemos modificar.” “É por isso que há cinco anos, toda terça-feira, vocês assistem a aulas, no seu escritório, sobre filosofia e cosmologia?” “Ninguém aí pretende ser um intelectual, mas é bom conhecermos nossas origens, como caminhamos diante da vida e deste universo imenso, que nos espanta e humilha.”

E a conversa prossegue: “Ah, Oscar, quando vamos ter tempo de dar um passeio? Por que você não pega a Vera, sua mulher, e o Rômulo, e vamos para a Europa descansar um pouco? Onze dias no navio à beira da piscina… e, depois, os bares e cafés dos Champs-Elysées, e a gente a ver o mundo a desfilar, os tipos mais exóticos e as mulheres bonitas, com seus sapatos de salto alto a baterem nas calçadas. E aí?” “É verdade, seria um bom passeio. Mas nem sempre as conversas de bordo são agradáveis. Você se lembra do dia em que o navio parou em Lisboa e nós ficamos a olhar na televisão os jovens portugueses lavando as estátuas de uma praça, contentes com a queda do salazarismo? E um casal de lisboetas, gente rica, sentado a nosso lado, não se contendo, começou a gritar: ‘São uns malucos, são uns malucos!’ O que me obrigou a intervir: ‘Malucos, nada; é a queda da ditadura, e isso um dia irá acontecer no mundo inteiro.’”