Escrito na segunda década do século XX, o romance Ulisses, do dublinense James Joyce, é um caso típico de “livro-que-mudou-o-mundo”. Pelo menos, o literário. Publicado em 1922 pela editora parisiense Shakespeare & Co., tornou-se referência máxima do romance moderno. A vendagem alcançada pela nova tradução brasileira, Ulisses (Objetiva, 912 págs., R$ 79,90), que custou sete anos a Bernardina da Silveira Pinheiro, 83 anos, professora de literatura aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj), é uma prova do interesse que o texto ainda provoca. Lançado no 101º aniversário do Bloomsday – o livro descreve em minúcias 18 horas do dia 16 de junho de 1904 –, já esgotou a primeira tiragem de cinco mil exemplares e está no fim da segunda, de três mil. Ou seja, pode ter superado a marca da tradução do filólogo Antônio Houaiss, morto em 1999. A dúvida existe porque essa primeira tradução – Ulisses (Civilização Brasileira, 960 págs. R$ 78,90) – chegou às livrarias em 1966, mas a vendagem computada pertence ao novo projeto gráfico lançado em 1993 pela editora Record – que adquiriu a Civilização Brasileira. Atualmente na 14ª edição, o Ulisses de Houaiss vendeu seis mil exemplares e passou a ser considerado empolado depois que Bernardina lançou sua versão “mais coloquial” – aguarda-se para breve uma terceira tradução realizada pelo professor de literatura paranaense Caetano Galindo.

Na verdade, esse critério é subjetivo. Em última instância, Ulisses é intraduzível. Bernardina, que não leu a versão de Houaiss, facilitou os diálogos, mas as chamadas palavras-valises, as citações eruditas, as ironias, as paródias e os trocadilhos são considerados uma areia movediça para qualquer língua que
não o inglês. James Joyce estreou aos 25 anos com o livro de poemas Musica
de câmara
, de 1907, seguido pela peça Exilados, de 1908, mas só publicada em 1918, e pelo livro de contos Dublinenses, de 1911. Ao aventurar-se a escrever uma novela, usou como técnica o monólogo interior, que evoluía conforme o amadurecimento do protagonista, Stephan Dedalus, para muitos o próprio Joyce.
O resultado, Retrato do artista quando jovem, saiu em 1913 e a partir daí o escritor concentrou-se naquela que seria sua obra máxima, em que a linguagem do
elenco de personagens, encabeçados pelo próprio Dedalus e o casal Leopold e Molly Bloom, flui como o pensamento.

Odisséia – Na abertura de sua tradução, Bernardina evidencia as semelhanças estruturais entre o livro de Joyce e a Odisséia de Homero, chegando a incluir um quadro comparativo. Seguindo instruções expressas do autor, Houaiss não colocou nenhuma nota em sua versão. Mas em 1972 escreveu uma espécie de pós-prefácio para a extinta revista Manchete em que atribui um certo exagero à proximidade entre
a obra contemporânea e a clássica. Mas ambos concordam que o herói dessa
“volta ao dia em 80 mundos”, como já foi apelidada, foi inspirado no grego. Recentemente a Livraria Nacional da Irlanda recebeu US$ 1,5 milhão por um manuscrito de 21 páginas de Ulisses. Joyce destruía seus originais e este sobreviveu por ter servido como prova no julgamento por obscenidade que o autor sofreu em 1920. Na verdade vários trechos de Ulisses foram publicados a partir de 1918, curiosamente por mulheres e americanas, no que se inclui a versão pioneira da Shakespeare & Co. O livro só seria lançado por uma editora de língua inglesa em 1934. Quem diria que palavras que ninguém ousava dizer em sua língua original teriam a tradução disputada em tantas línguas?