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O País, perplexo, assiste a um capítulo fatal no rastro da crise aérea que se arrasta sem fim. Foi por vezes uma tragédia anunciada, tamanha a quantidade de ocorrências de risco que a precederam. Ameaças de colisões, seguidas derrapagens – uma delas ainda na noite anterior – davam os sinais do drama iminente. O desastre do vôo 3054 da TAM, o maior da história aérea brasileira e um dos maiores do mundo, ocorre apenas dez meses depois do acidente com o avião da Gol, que ceifou a vida de outros 154 passageiros e destroçou dezenas de famílias. No intervalo entre as duas quedas, o caos nos aeroportos, a demora nas medidas, a inanição dos sistemas de controle, a incompetência das autoridades, a negligência na segurança e a insaciável ganância de empresas envolvidas no negócio aéreo compuseram um quadro de horror que, no todo, é essencial para a compreensão da tragédia. Podem-se levantar várias alegações para o inaceitável fim do vôo 3054 – a chuva, o avião pesado, a velocidade da aeronave, eventuais erros do piloto, problemas técnicos –, mas nenhuma delas será capaz de afastar da mente dos brasileiros a sensação de descaso do poder central. A inoperância e a ausência de ações concretas para reverter o quadro foram cruciais. O presidente chegou a pedir “prazo, dia e hora” para o fim do caos. Ficou na intenção. Providências não vieram e – surpreendente! – não se soube de nenhuma demissão ou punição por conta, na ocasião.

O fato é que o Estado falhou na missão essencial de zelar pelo cidadão no seu direito básico de ir e vir, com segurança. A sucessão de eventos que desaguaram na fatídica terça-feira 17, só prova isso. No fundo, no fundo, os responsáveis pelo setor nunca acreditaram muito que uma catástrofe pudesse voltar a acontecer tão cedo. Por qualquer ângulo que se observe, nota-se a apatia de um poder consumido pelo jogo do empurra-empurra. Cenas de reuniões de autoridades batendo cabeça e as declarações dadas logo após o acidente mostraram-se patéticas. A Anac, a agência que deveria zelar pela aviação civil e virou o centro de defesa dos interesses privados das companhias, afirmou não ter nada com o ocorrido. A Infraero também eximiu-se de culpa – muito embora fosse ela a responsável pela liberação da pista, que ninguém sabe ainda se tinha ou não condições de pouso. A falta de ranhuras de escoamento para evitar a aquaplanagem foi apontada como um dos graves erros. Mas, afinal, férias, o Pan e o aumento do tráfego estavam a exigir urgência na liberação da pista e a Infraero cedeu – sem culpa alguma, claro! A Aeronáutica, de sua parte, retirou-se do gabinete de crise montado em São Paulo alegando não existir “nenhuma participação do controle de tráfego no evento”. Um festival de barbaridades. O ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, chegou a dizer que eram “mera coincidência” duas grandes tragédias com aviões em menos de dez meses. Fica a questão: de quem é a culpa pelo ocorrido? Para se verem livres do pesado fardo de tantas vítimas, muitos vão acabar elegendo um mordomo culpado. Ou uma turbina qualquer. E assunto encerrado.

Atitudes definem o perfil de um líder. Agir como protagonista da cena, mesmo naquelas mais difíceis, mostra o tamanho da autoridade. Durante os momentos mais dramáticos do acidente, em meio à comoção nacional, um retrato marcante da ausência de liderança despontava: o presidente Lula preferiu recolher- se em Brasília. Horas depois, e mesmo no dia seguinte, e no outro, Lula não apareceu em público para tomar a frente das soluções, como era de se esperar de um chefe de Estado imbuído da missão de governar. O sumiço fez parte de uma “tática de gestão de crise”: não aparecendo, avaliaram seus auxiliares, Lula livrava-se da abordagem política do evento. Ledo engano. As primeiras respostas do presidente limitaram-se a uma nota oficial do Palácio do Planalto em que se dizia “consternado” e “solidário” com os familiares das vítimas. Ministros trataram de gestões burocráticas. Tarso Genro, da Justiça, determinou à polícia uma investigação rigorosa – como se algo menos do que rigoroso fosse cabível. Medidas de melhoria na operação foram tomadas só na sexta-feira 20.

Era muito pouco diante do impacto da catástrofe e da continuidade do colapso de funcionamento nos saguões de embarque e desembarque por todo o País. Meses de caos aéreo ainda não foram suficientes para que o Executivo assumisse de vez o manche e oferecesse saídas convincentes. O desabafo do presidente da entidade dos controladores de vôo, Marc Baumgartner, dá uma pitada a mais no caldo de imprudência e inépcia que parece predominar: “Quantas pessoas serão mortas antes que governantes brasileiros parem com a experiência viva da FAB na segurança do público que viaja?” Surge uma questão essencial que todos estão a se perguntar: é seguro voar no Brasil? Em que pese as reiteradas declarações das autoridades enaltecendo o padrão de segurança no espaço aéreo nacional, os fatos parecem mostrar o contrário. E é preciso que se diga com todas as letras: dado o conjunto de incidentes e o despreparo do sistema, poucos estão acreditando nessa possibilidade. Boa parte daqueles que, por necessidade ou lazer, vão hoje viajar teme pegar um avião. Algo absolutamente inadmissível em um país de dimensões continentais – que já não conta com a alternativa ferroviária, cuja malha rodoviária é altamente precária e que só possibilita a alguns poucos privilegiados seguirem de navio quando embarcações estrangeiras atracam por aqui nas temporadas.

De uma maneira geral, aviões são tidos como uma opção segura de transporte. Mais do que os carros, propalam os defensores. Aviões caem, em geral, por falhas técnicas: uma turbina que explode, problemas no trem de pouso. Sinistros raros. No Brasil, a fatalidade que despenca dos céus ganha cotidianamente um componente de risco sobressalente vindo de terra. Torres de controle com aparelhos obsoletos, operadores rebelados, pistas sobrecarregadas nos pousos e decolagens. Até cachorro aparece para atrapalhar naquele que é o mais congestionado e sufocado aeroporto do País, Congonhas, palco da tragédia. Cercado de cidade por todos os lados, Congonhas e suas curtas pistas não permitem erros. Qualquer saída de uma aeronave leva à colisão com um prédio ou à avenida repleta de carros e pessoas. Congonhas precisa mudar – fisicamente de lugar ou estruturalmente. Também as autoridades devem exibir mudanças. De postura, fique entendido. Frases lapidares como as dos ministros Guido Mantega – “o caos é o preço do sucesso” – e Marta Suplicy – “relaxa e goza” – ainda povoam as piores lembranças dos brasileiros. A tolerância da população com a seqüência de descaso tem limites e as vaias ouvidas no Maracanã por Lula devem ser entendidas como um eloqüente sinal da indignação geral.