Uma simples palavra de três letras vai decidir o futuro da venda de armamentos aos cidadãos civis do País. O “sim” ou o “não” que respondem à pergunta: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” A questão será colocada aos 120 milhões de eleitores brasileiros no domingo 23 de outubro, na votação do referendo previsto no Estatuto do Desarmamento e confirmado pela Câmara dos Deputados na quarta-feira 6. A votação será antecedida por campanha de rádio e tevê com os argumentos a favor e contra a proibição do comércio de armas e cartuchos. Já estão se formando as frentes parlamentares antagônicas. De um lado, a frente “Brasil sem armas”, articulada por ONGs como o Viva Rio, Sou da Paz, associações de familiares de vítimas da violência e apoiada pelo governo federal. Seu principal argumento é que tirar armas de circulação faz diminuir a criminalidade em geral e não apenas os crimes passionais. “Estatísticas mostram que muitas vezes a pistola do cidadão comum é roubada e vai parar nas mãos dos bandidos”, diz o sociólogo Antonio Rangel Bandeira, do Viva Rio. Do outro lado estará a frente “Pró-legítima defesa”, apoiada por usuários, fabricantes e comerciantes de armas, além de parlamentares e personalidades que se sustentam em duas teses: a garantia do direito de defesa e o temor de que a proibição da venda de armas possa incrementar o comércio ilegal dos traficantes. “Na prática, o fim do comércio representaria uma espécie de proibição do porte e uso de armas, algo que o próprio Estatuto do Desarmamento não prevê”, critica o deputado federal Alberto Fraga (PMDB-DF), um ex-policial militar.

Restrições – O debate vai pegar fogo, já que o referendo tem o poder de provocar uma mudança profunda em um mercado que movimenta um bom dinheiro – as duas maiores empresas do setor, Taurus-Rossi e Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), faturaram cerca de R$ 400 milhões no ano passado. Basta que os eleitores, por maioria simples (50% mais um voto), respondam “sim” e a compra de armas e munições ficará restrita a poucas categorias e situações excepcionais. Apenas integrantes das Forças Armadas, policiais em geral (incluídos policiais federais, militares, civis, rodoviários, ferroviários, integrantes de guardas municipais), agentes da Abin, funcionários de empresas de segurança privada, praticantes de tiro esportivo, colecionadores, juízes e procuradores poderão ter armas e comprar munição, mas em condições controladas. Quem estiver fora da lista não poderá comprar armas de fogo ou munição. A proibição de comprar balas e cartuchos valerá, inclusive, para quem tem arma registrada. Diante da importância da votação, os dois lados acenam com uma coleção de argumentos, pesquisas e análises. O objetivo é mobilizar os cidadãos comuns. Gente que só debate o desarmamento quando se depara com histórias reais – e quase sempre dramáticas.

Foi um desses casos trágicos, acontecido na própria família, que fez o ex-combatente Otacílio Macedo, 82 anos, a ser a favor do desarmamento. Ele se lembra com tristeza da viagem que fez do Rio de Janeiro à sua terra natal, a cidade paraibana de Patos, em 1979, acompanhado do filho Ronaldo, então com 16 anos. O cunhado deixou sobre a mesa uma espingarda carregada. “Meu filho pegou a arma e ficou brincando com outros adolescentes. Um deles abriu o peito e mandou que ele atirasse. Meu garoto atirou e o amigo morreu na hora”, recorda. Otacílio salvou o filho do linchamento. Conta que o adolescente ficou transtornado e nunca mais foi o mesmo. Acabou praticando crimes e morreu assassinado dez anos depois. “Palmira, minha mulher, nunca mais teve alegria.” Isso fez com que o ex-combatente tomasse horror a armamentos. “O cidadão comum não precisa lidar com armas, não está preparado. Quem deve manejar pistolas e espingardas é a polícia. Não quero que ninguém passe o que passei”, afirma.

Tiroteio – O advogado paulista Paulo Cremonesi, no entanto, tem motivos para acreditar que a arma representa a diferença entre a vida e a morte em um
momento de perigo. Criminalista de 42 anos que atuou como secretário do Direito Econômico do Ministério da Justiça no governo FHC, ele teve que usar a sua pistola Imbel 380 – devidamente registrada – em quatro ocasiões, ao se defrontar com bandidos. Na primeira, há oito anos, estava na casa de sua mãe, de 72 anos, onde também morava sua tia, de 74, no bairro Morumbi. Ele ouviu um barulho no telhado, no início da madrugada, e pegou sua arma. “Olhei pela janela e vi uma pessoa armada que tinha pulado o muro. Outras três estavam armadas e prestes a invadir
a casa.” Ao perceberem a aproximação de um guarda noturno, os ladrões começaram a atirar – primeiro no vigilante e depois em direção ao imóvel. Cremonesi os surpreendeu, ao disparar também. Seguiu-se um rápido tiroteio até que os três ladrões fugiram. O advogado registrou o caso na delegacia. A última vez foi há seis meses. Ele foi abordado por dois assaltantes armados, que dispararam contra seu carro blindado. Cremonesi deu quatro tiros e botou os ladrões para correr. “Se o governo não nos dá a segurança devida, a quem vamos recorrer? Acho que a arma deve ser usada de forma responsável e depois de algum treinamento. Sou contra a proibição pura e simples.”

Com o referendo, uma discussão ferrenha deverá acontecer no campo político. Caso a proibição do comércio de armas e munições seja aprovada, acabará gerando conseqüências mesmo para quem já tem arma legal. Sem poder comprar novos cartuchos, com o passar dos anos as pistolas e revólveres tendem a se tornar peças de museu. “É uma revolução. Esse referendo poderá ter a dimensão cívica de uma Diretas-já”, diz o ex-ministro da Reforma Agrária e deputado Raul Jungmann (PPS-PE), um dos principais líderes pró-desarmamento no Congresso Nacional e coordenador da frente Brasil Sem Armas. Ele baseia sua posição na pesquisa do IBGE que contabiliza 360 mil mortes por armas de fogo no País, de 1998 a 2000 – o que representa 88% dos homicídios. “O SUS gasta por ano R$ 130 milhões com o atendimento de acidentes decorrentes de armas. O número de disparos em brigas de trânsito, entre familiares, vizinhos, por vingança, extermínios é muito maior do que os associados à criminalidade, como assaltos.” De acordo com o Ministério da Justiça, um dos argumentos a favor da proibição é que 73% das armas apreendidas nas mãos de criminosos já estiveram na legalidade. Outro defensor do desarmamento é o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). “O referendo por si só pode mudar a cultura da violência, pelo debate que vai surgir no segundo semestre”, acredita. “A incidência de homicídios por arma de fogo deve ser tratada como epidemia, pois tira mais vidas que os acidentes de trânsito.”

Comércio clandestino – Os parlamentares contrários à proibição também têm bons argumentos. A deputada federal Denise Frossard (PPS-RJ) diz que não é contra o referendo e que, em linhas gerais, concorda com a iniciativa do desarmamento. “A tendência moderna é reduzir o número de armas em circulação. Mas acho que a mera proibição pode aumentar o comércio clandestino.” Denise, que é questionada por ter recebido contribuição da empresa de munições CBC para sua campanha, justifica: “Não tenho simpatia por armas, nunca andei armada e tenho todos os motivos para isso: minha mãe se suicidou com uma arma quando eu era adolescente. Mas uma coisa é o meu sentimento pessoal, outra é o que eu acho melhor para a sociedade. Como parlamentar, tenho que saber separar os dois.” O deputado Alberto Fraga também acha que a proibição da venda legal vai dar força ao comércio clandestino. “Quem tiver arma em casa será obrigado a comprar munição ilegal. Não prego que as pessoas devam sair armadas de casa, mas é preciso preservar o direito à legítima defesa.” Fraga critica também o alto custo do referendo – estima em R$ 519 milhões, o mesmo da última eleição, e o grupo a favor do desarmamento diz que a votação não custaria mais que R$ 250 milhões.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

A maior parte dos números e argumentos que baseiam a campanha a favor do desarmamento é garimpada pelas ONGs Viva Rio e Instituto Sou da Paz. “Sabe-se que somente o desarmamento não resolve o problema da segurança pública, mas colabora”, avalia Antonio Rangel Bandeira. “Em 2003, foram roubadas 40 mil armas e, em 2004, o número caiu para 15 mil. Esse resultado teve a influência da campanha de desarmamento da população, que entregou voluntariamente as suas armas.” Os militantes contrários ao desarmamento criaram a ONG Viva Brasil, coordenada pelo professor Benê Barbosa. “A não-reação deixou de ser certeza de que não haverá violência; você também pode morrer mesmo sem reagir”, adverte Barbosa. Segundo ele, o governo propaga esse argumento e, com isso, lança
uma cortina de fumaça sobre o tema segurança pública. “O que existe hoje é a falência da segurança pública.”

O tema também é discutido no meio do show biz. O apresentador Otávio Mesquita
é um dos que discordam da proibição. “O governo não vai em cima do bandido e
o cidadão é obrigado a se desarmar”, critica. “Eu mesmo quase fui assaltado duas vezes. Bastou mostrar a arma para que os ladrões desistissem.”

Empresários do setor de armas já se preparam para as conseqüências do referendo. A CBC, que gera 1.250 empregos diretos, deverá responder a uma possível proibição com demissões. “O mercado voltado para os usuários civis no Brasil representa 25% dos nossos negócios. Teremos que cortar 300 empregados”, afirma Marco Antonio de Castro, presidente do conselho de administração da empresa. Ele, no entanto, considera a consulta popular democrática. A Taurus, principal fabricante de armas do País, vem adaptando sua linha de produção para a queda de vendas de armas, e suas máquinas já produzem ferramentas, capacetes, escudos antitumulto, coletes à prova de balas. Adquiriu a Wotan, empresa que fabrica peças para hidrelétricas, termelétricas e turbinas de aviões.

Diferenças em casa – O sociólogo Rangel Bandeira acredita que o assunto deve ser medido por números que nada têm a ver com cifrões. “O que importa é a quantidade de vidas que serão poupadas.” No Estado onde está sediada a Taurus, o Rio Grande do Sul, concentra-se quase 50% do total de armas registradas no Brasil, segundo o Sistema Nacional de Armas. Como o Estado registra o sexto menor índice de homicídios do País, os militantes usam esse exemplo para tentar desmentir a idéia de que um grande número de armas resulta em muitas mortes.

O debate em torno do tema revela situações inusitadas, como a discussão instalada na casa do presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), que já se pronunciou contra o desarmamento, enquanto sua mulher, Amélia, se posiciona a favor. “Acho que ter arma em casa é perigoso”, diz ela. Mas, quanto ao referendo, a senhora Cavalcanti ainda não formou opinião. “Não posso dizer que votaria a favor
da proibição do comércio de armas. Antes, é preciso desarmar o marginal e dar condições à polícia.” Bons argumentos e números confiáveis são a maior garantia
de voto consciente.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias