Quando Jatobá, o deficiente visual vivido por Marcos Frota na novela América, da Rede Globo, mostra o sorriso largo ou os passos suaves de dança, um contingente especial de pessoas sente-se redimido. Com seu alto-astral, Jatobá reabilita e coloca em evidência as dificuldades e as conquistas comuns na vida de aproximadamente 25 milhões de brasileiros que têm algum tipo de deficiência. Ao desvendar o mundo para a pequena Flor, menina cega interpretada por Bruna Marquezine, que na trama era superprotegida pela mãe, ele expõe um universo que foi esquecido e ignorado no País por muito tempo. Os atores sentem-se recompensados. “O maior elogio é ver que as pessoas esquecem que o Jatobá é cego. Ele decidiu ser feliz do jeito que é, trabalha, ama, namora, tem fome de viver e reclama seus direitos e me empresta esperança e alegria”, relata Frota. Já Bruna visitou o Instituto para Cegos Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, para compor o personagem. “A gente pensa que o mundo dos deficientes visuais é triste, mas não, eles passam uma energia muito boa. Lutam e mostram que são capazes”, conta ela.

Ao mesmo tempo que as pessoas portadoras de deficiência encontram mais espaço na mídia, multiplicam-se atividades esportivas destinadas a elas. Cerca de 40 eventos oficiais acontecem durante o ano no Brasil. E outros informais, como o promovido pela fabricante de equipamentos auditivos Widex Adventure, em Florianópolis, no mês passado. A fabricante dinamarquesa reuniu 20 portadores de deficiência e levou-os para fazer rappel, trekking, canoagem e corrida. A modelo cearense Vanessa Vidal, 21 anos, e a jogadora de vôlei paulista Natália Martizis eram algumas das convidadas. Por meio de leitura labial e com o auxílio de aparelhos no ouvido, conversavam o tempo todo. Natália conta que é adotada, tem surdez profunda e joga vôlei profissional pelo Sesi de Uberlândia (MG). “Enfrentei problemas de adaptação, mas venci”, diz. Já Vanessa estuda ciências contábeis em Fortaleza e faz catálogos de moda. “Não ganho dinheiro com isso, faço porque gosto. Sou vaidosa”, revela.

Também no campo cultural, o tema ganha destaque. Um documentário sobre síndrome de Down comoveu crítica e público e levou sete prêmios do 9º Cine PE – Festival do Audiovisual de 2005. Como diz o produtor e diretor do filme, Evaldo Mocarzel, está em curso um antídoto ao individualismo. “Fiz o filme que eu gostaria de ter visto na maternidade quando cheguei para ver minha segunda filha. Recebi a notícia e meu mundo desabou. Depois vi que o grande vilão era o meu próprio preconceito”. Mocarzel é pai de Laura, oito anos, Joana, cinco, e Matheus, dois. “A questão é muito simples. As crianças com síndrome de Down têm um ritmo mais lento de aprendizagem, precisam experimentar pelos sentidos, mas são feras em atividades repetitivas, afetuosas, agregadoras, caprichosas. Namoram, casam, cavalgam, surfam”, diz.

Nos palcos, um corpo de balé composto por garotas cegas emociona platéias. Há 11 anos, quando tinha 15, a fisioterapeuta Fernanda Bianchini foi convidada a dar aulas de balé para as meninas do Instituto de Cegos Padre Chico, em São Paulo. “Quem não enxerga não tem noção de espaço e tende a olhar sempre para baixo. Tem dificuldade de manter o equilíbrio e dar expressão ao rosto”, conta Fernanda. “Eu não conseguia passar a elas a idéia de leveza para os braços. À noite, sonhei que no lugar deles havia folhas de palmeiras”, conta. Adotou então, com sucesso, a folha para ensinar às alunas a movimentação dos braços. Uma de suas primeiras pupilas, Geyza Kelly da Silva, 19 anos, é hoje professora de balé. Ela sempre quis ser bailarina, mas o sonho só se materializou, ironicamente, quando perdeu a visão, aos nove anos, por contaminação por fungos do pombo. Desde o ano passado, Geyza está numa escola pública em São Paulo. Cursa o ensino médio com outras duas amigas cegas e diz que é muito difícil estudar. “Não há livros em braile e as professoras esquecem nossa condição. Sempre fui ótima aluna em matemática. Agora não consigo acompanhar.”

Nas empresas – Geyza revela um dos grandes nós da educação inclusiva, prevista pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A inclusão de pessoas portadoras de deficiência faz parte de um movimento mundial, que ganhou atenção no Brasil com a edição de leis que estabelecem cotas de deficientes em empresas – exigência de admissão de um mínimo de 2% a 5% de portadores de necessidades especiais – e colocam em escolas comuns as crianças com deficiências físicas ou mentais.

Mas, para mostrar sua capacidade, as pessoas precisam de oportunidades. “Muitas empresas pensam só em cadeirantes. Há resistência contra o deficiente visual e dúvidas sobre como se relacionar com todos eles”, informa Maria de Fátima e Silva, gerente de responsabilidade social da Gelre, empresa que recruta e seleciona cerca de sete mil profissionais por ano, 500 deles com alguma deficiência. Nem sempre há quem defenda a presença do aluno portador de deficiência na rede regular de ensino, com apoio de serviços especializados na própria escola ou em centros especializados. Muitos pais e até professores acham que não é possível uma escola regular atendê-los. “Ainda há quem entre na Justiça contra a educação inclusiva”, informa a pedagoga Ana Maria Barbosa, supervisora de comunicação do site da Rede Saci, da USP (www.saci.org.br), que atua na difusão de informações sobre deficiência. “É preciso mudar até a mentalidade dos pais porque, se eles não acreditarem no potencial do filho, não investirão nele.”

Não é à toa que, dos 24,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, apenas 3,2 milhões freqüentaram algum tipo de escola. Esse número cai para 700 mil na faixa etária de 18 a 29 anos, idade média de ingresso ao ensino superior. O censo escolar 2004 do Ministério da Educação trouxe a boa notícia de que aumentaram os alunos com necessidades especiais em classes comuns das redes de ensino pública e privada. O número cresceu 28,1% – passou de 144.141, em 2003, para 184.716, em 2004. Na rede pública, os números foram de 136.186 para 176.200, crescimento de 29,4%. Na particular, o aumento foi de 7,1% –, de 7.955 para 8.516. O que não resulta numa inclusão efetiva. Mas há outras reivindicações, ainda mais básicas como condições de acessibilidade.

O músico, compositor e ex-baterista de O Rappa Marcelo Yuka, que formou há cerca de um ano a banda F.U.R.T.O. (Frente Urbana de Trabalhos Organizados) e acaba de lançar o CD Sangue audiência, usa cadeira de rodas desde novembro de 2000, quando levou quatro tiros. “Fui vítima da falta de segurança pública e nunca recebi nenhuma ajuda do governo por isso. Além do sofrimento físico, temos que lidar com o descumprimento das leis”, reclama. Dois episódios recentes deixaram o músico abatido. Ele foi vítima de assalto de novo. Só que todos no carro conseguiram sair correndo, menos ele. “Fiquei esperando o pior. É uma sensação de impotência enorme”, diz. Em outra ocasião, foi ao cinema com a namorada. Não havia banheiro adaptado. Procurou sem sucesso e resolveu ir embora. “Nenhum táxi parava. Tive que jogar a cadeira na frente de um”, conta.

Lei – Para Carolina Sanchez, da Coordenadoria Nacional para Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, situações como esta estão com os dias contados. O decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004 regulamentou as leis federais 10.048 e 10.098 de 2000, que tratam da acessibilidade das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Determina prazos para ações que garantam os mesmos direitos e oportunidades de utilização dos equipamentos públicos e coletivos. Estabelece, por exemplo, 30 meses para a adaptação de prédios de uso público já existentes e 48 meses para os de uso coletivo. O maior prazo – 120
meses – é para a adequação de veículos de transporte coletivo. Prevê também
a oferta de bulas e manuais de instrução em braile e o acesso de deficientes
auditivos aos serviços das empresas de telecomunicações. Cabe a todos não
deixar que isso se transforme em letra morta.