Presidente do STJ alerta para operigo de ações espalhafatosas daPolícia Federal e diz que gramposviraram objeto de chantagem

Presidente do Superior Tribunal de Justiça desde abril do ano passado, Edson Vidigal, que também é jornalista, dá um grito de alerta: o Estado democrático de direito no Brasil está ameaçado. O alvo da preocupação do ministro do STJ – último degrau no Poder Judiciário para questões não constitucionais – são as recentes operações da Polícia Federal, com a invasão de seus agentes a escritórios de advocacia, onde recolhem documentos e computadores e até usam algemas em situações que muitos consideram desnecessárias. As investigações são pedidas pelo Ministério Público (MP) ao Poder Judiciário, que autoriza e desencadeia a ação da PF. Vidigal cobra mais cautela de todos e alerta para a utilização exacerbada e até ilegal de grampos telefônicos. Muitas vezes, o conteúdo dessas gravações é usado na fabricação de dossiês que são objeto de chantagem. Segundo ele, o Estado está perdendo o controle, e as idéias fascistas estão ganhando corpo.

ISTOÉ – Em operações recentes, agentes da PF têm invadido escritórios de advocacia. Há quem compare essas ações ao que acontecia no Estado Novo e na ditadura militar. Como o sr. vê essa situação?
Edson Vidigal

Estou preocupado porque o que estamos assistindo no Brasil nos induz à perplexidade. Não seria demais admitir que estamos a largos passos de um Estado nazista. O que eu vejo de mais perigoso é que esse totalitarismo já escapou ao controle do próprio Estado. Deveríamos estar em um Estado de direito democrático. Mas, aos poucos, o Estado está perdendo controle sobre ações nefastas, perigosas do crime organizado, que ao mesmo tempo se infiltra com idéias fascistas nas ações dos próprios agentes públicos.

ISTOÉ – O sr. está se referindo especificamente às ações da PF?
Edson Vidigal

A PF não age por conta própria. Ela é apenas um instrumento do Estado a serviço do Poder Judiciário induzida pelo Ministério Público. É preciso que alguns agentes do MP procurem agir com mais cuidado nas requisições que fazem. E é necessário mais precaução por parte de alguns coleguinhas da magistratura ao aferir essas requisições. É temerário simplesmente deferir todo e qualquer pedido sem determinar a sua motivação, sem ver se esses terão eficácia para a investigação. Infelizmente, no Brasil nós começamos tudo pelo fim. Interceptação telefônica e quebra de sigilo bancário são providências extraordinárias que a lei defere em último caso, como checagem da prova testemunhal ou material. Mas estamos observando uma ação muito abusiva com relação a isso não só por parte do Estado, mas de setores privados organizados a serviço da chantagem e do crime. Isso é muito preocupante porque vemos que muitos direitos garantidos pela Constituição, pelo Estado democrático de direito, não estão sendo respeitados.

ISTOÉ – Com relação ao grampo telefônico, cada vez mais disseminado, há a utilização do conteúdo dessas informações para se realizar chantagens?
Edson Vidigal

A chantagem do grampo acontece assim: por exemplo, um camarada da empresa telefônica que sabe chegar na linha recebe dinheiro por fora e faz o grampo. Tem muita gente ganhando dinheiro no Brasil com isso. Há também os grupos mais organizados que não precisam necessariamente das empresas telefônicas para ter acesso às linhas. Hoje, a coisa está mais sofisticada. Implantam-se aparelhos receptores, câmaras. Certa vez liguei para o dr. Tancredo Neves porque eu tinha uma informação para passar. Ele pediu que eu fosse correndo à casa dele. Eu até argumentei: “Mas, dr. Tancrredo, eu estou na Asa Norte. Preciso ir aí na Asa Sul (no plano piloto, em Brasília)?” Aí ele me lembrou que tinha sido ministro da Justiça do Getúlio Vargas e desde então havia visto o que era possível fazer com o telefone: “Telefone é para marcar encontro.” Anteontem (sexta-feira 24) estive com um juiz em São Paulo que me contou que estava sendo seguido e grampeado. Ele estava com um amigo no restaurante e de repente percebeu um flash. Olhou para trás e viu que uns homens o estavam seguindo, filmando e fotografando. Que Estado de direito democrático é esse?

ISTOÉ – O presidente Lula não é um democrata?
Edson Vidigal

Isso não depende apenas da vontade pessoal de quem quer que esteja na Presidência da República. É o sistema. No regime militar havia o sistema, a linha dura, a linha mole. Isso me lembra o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, em que há um personagem, uma figura oculta que manda em Alecrim, província do Estado de Eldorado, e comanda as operações de repressão. Podemos chamar isso novamente de sistema: não quer dizer uma coisa organizada, sob comando de um só. O Estado está se desorganizando no seu tecido, na sua burocracia. Isso começa a prejudicar a cidadania. A sociedade civil tem que se unir. Estamos vivendo uma nova e disfarçada ditadura. Estamos caminhando a passos largos para um sofisticado Estado nazi-fascista. E não vai precisar ter ditador com bigodinho. Não vai precisar ter as tropas SS (da elite do Exército nazista) desfilando porque isso tudo está aí infiltrado contra os direitos do cidadão, que são a honra, a privacidade, a liberdade. Os cidadãos têm o direito ao contraditório, o direito ao devido processo legal. Não podemos assistir a isso de uma forma passiva. Temos que nos indignar. A sociedade tem que cobrar isso porque o Estado está escapulindo ao seu controle.

ISTOÉ – Mas quando um juiz autoriza quebra de sigilo passa a ser uma ação legal. Na ditadura você recorria ao bispo se fosse o caso, hoje você recorre a quem?
Edson Vidigal

Hoje precisamos recorrer ao Estado de direito, ao Judiciário. Precisamos cobrar e animar os nossos juízes para que eles não tenham medo. Que juiz hoje tem coragem de indeferir um pedido de quebra de sigilo bancário ou pedido de prisão? Logo que ele assume uma posição dessas ele passa a ser suspeito. Eu conheço magistrados da área penal que estão migrando para a área cível porque
já não suportam as suspeitas que são levantadas contra eles. Isso é perigoso,
um Estado de direito em que os magistrados já têm medo de decidir. Precisamos
de segurança jurídica.

ISTOÉ – Essas investigações oficializadas também viram subproduto para dossiês?
Edson Vidigal

Sim, porque se transformam em matéria-prima para dossiês. Eu tenho informações, mas preciso comprovar isso, de que existem escritórios especializados em elaboração de dossiês com o objetivo de chantagear as pessoas. Só espalhar o boato destrói um pouco a credibilidade, especialmente se a pessoa é um agente público, exerce uma função de autoridade, ou se é um profissional respeitado.

ISTOÉ – A sociedade tem a percepção de que a corrupção e a impunidade são muito grandes. Esse tipo de ação acaba tendo aprovação popular diante dessa circunstância, não?
Edson Vidigal

Nós não vamos responder à perplexidade da sociedade admitindo abusos, ações perversas contra os direitos constitucionais das pessoas. Quando o Estado de direito democrático assegura o direito à defesa do acusado, não é para que ele, comprovadamente culpado, seja inocentado. É para que ele possa ter o direito a pena justa, se ele for culpado. Para que ele não pague nem menos nem mais. É direito de todo acusado ser julgado presumidamente inocente até o trânsito final da sentença condenatória. No Brasil, hoje, nós começamos a ver uma inversão: todo cidadão é em princípio culpado. Todos somos suspeitos.

ISTOÉ – Esse processo o sr. vem detectando há tempos?
Edson Vidigal

Sim. Estamos precisando fortalecer o Estado de direito, que passa inicialmente pela moralização dos costumes políticos. Nós precisamos de uma faxina. Não é cassar dois ou três. É botar para fora, escorraçar 50, 60, 80, quantos ali estejam no exercício indevido de um mandato obtido de alguma forma malandra. É preciso que nós canalizemos esse momento de indignação da sociedade, não contra o regime, mas para fortalecê-lo, enfrentando a impunidade. O Congresso Nacional está desafiado porque no ponto a que chegamos hoje a opinião pública se coloca contra o Legislativo, já desconfia do Judiciário. Amanhã não vai mais confiar no Poder Executivo. Meu Deus do céu, para onde nós iremos? Então, esse aqui é um grito de alerta que vem de uma geração que já conheceu o que é uma ditadura.

ISTOÉ – Não é incoerente dizer que o País precisa de uma faxina e, ao mesmo tempo, que há desmando em relação à limpeza que está sendo feita pela PF?
Edson Vidigal

Não. Estou sustentando que tudo há que ser feito dentro dos princípios
e das garantias constitucionais. E que quem abusou de poderes possa
responder criminalmente.

ISTOÉ – Podemos chegar a um impasse político, uma crise envolvendo as instituições, os poderes da República?
Edson Vidigal

Se o presidente Lula não fosse um democrata, nós teríamos todo um caldo preparado para uma chavização, uma fujimorização. Ou seja, o descrédito e a desmoralização das instituições. Então, é por isso que temos de correr na frente e salvar o crédito e a moral das instituições, botando para correr também os amorais, os imorais, os desonestos, os indecentes, os que estão querendo achar que a vida pública é um grande meretrício.

ISTOÉ – Durante os escândalos Collor se falava que o Brasil estava se depurando. A gente não evoluiu nada?
Edson Vidigal

Não evoluiu nada porque nós cuidamos só de pessoas, não da estrutura, que continua a mesma: comissão de orçamento, emenda parlamentar. Tem que investigar isso tudo. Eu vejo que está tudo muito frágil. As pessoas em Brasília estão muito acomodadas. É preciso ouvir o País.

ISTOÉ – O sr. concorda com o argumento do PT de que haveria uma tentativa de golpe das elites?
Edson Vidigal

Não. O que temos são grupos criminosos organizados. Já estão falando até que essa grana do mensalão está vindo de paraísos fiscais, né?

ISTOÉ – Então, evitar esse tipo de coisa não depende da figura do presidente?
Edson Vidigal

Não, o presidente precisa ser líder. O País precisa de um projeto de nação e precisa de um líder que possa conduzi-lo com firmeza.

ISTOÉ – O sr. acha que o presidente Lula tem exercido esse papel?
Edson Vidigal

Na minha avaliação pessoal, com todas as dificuldades que as condições sociais, políticas e as deficiências do mundo circundante impõem, ele tem se esforçado. Mas não dá para ficar só em Brasília.

ISTOÉ – Ele viaja bastante.
Edson Vidigal

Eu também. Tenho viajado muito pelo Brasil e percebo que cada vez que eu saio pensando que a solução que está na minha cabeça é a ideal eu volto com outra. Então é importante andar, ouvir, ouvir críticas, ser tolerante às críticas.

ISTOÉ – Ele está muito fechado?
Edson Vidigal

Não, o sistema de governo é que é
muito fechado, o Executivo.

ISTOÉ – Mas o Judiciário também não é muito fechado?
Edson Vidigal

O Judiciário já foi muito fechado e menos transparente. Hoje está mais aberto. As providências indicadas pela reforma do Judiciário dão pequenos passos à frente. É melhor do que se fossem passos para trás.

ISTOÉ – Agora se fala em reforma política, que a cada crise vem à tona. Mas a reforma atual não é um arremedo?
Edson Vidigal

Um arremedo e um casuísmo porque não dá resposta. Essas questões teriam que ser mais debatidas pela sociedade. Não podemos fazer uma democracia para alguns. Temos que ir à raiz de tudo, que é o financiamento da campanha eleitoral. Cada partido que ganha a eleição tem o seu mala-preta.

ISTOÉ – O sr. defende o financiamento público das campanhas?
Edson Vidigal

Não apóio o financiamento público porque ele será uma mentira. Um país que tem um orçamento contingenciado, que tem pouco para manter o custeio da máquina, que não tem quase nada para investimento, vai poder tirar R$ 7 por eleitor, para depois dividir pelos partidos políticos? Que partidos são esses? O importante é que não fiquemos na mesmice, achando que tudo deve ficar como está.