Guerras e conflitos costumam acarretar destruição ou prejuízo às nações que os protagonizam. Na mítica ilha de Tupinambara, coração do rio Amazonas, o confronto é uma fonte inesgotável de riqueza. A rivalidade entre os bois-bumbás Garantido e Caprichoso, que divide a cidade de Parintins entre bairros vermelhos e azuis, movimentou este ano cerca de R$ 100 milhões, pelas estimativas da prefeitura, superando a pecuária como a principal atividade econômica em abril, maio e junho. A história da pequena Parintins começou a mudar em 1965, quando foliões provocavam tantas brigas de rua – e até mortes – que a Igreja resolveu levar a competição para o terreno em frente à paróquia. Era o início do maior festival folclórico do País, nascido de uma “guerra” que produz uma circulação de dinheiro inimaginável para os padrões caboclos.

Em seu 40º aniversário, o Festival Folclórico de Parintins atraiu 106 vôos lotados, sendo 70 Boeings. Mil barcos e navios atracaram, também apinhados, no porto
e nos barrancos em torno da cidade, que tem 100 mil habitantes e recebe outros
100 mil para a folia. O megaespetáculo, apresentado nos dias 24, 25 e 26 de junho na arena do bumbódromo, com capacidade para 35 mil pessoas, acabou com a terceira vitória consecutiva do boi vermelho, o Garantido. Para o governador do Amazonas, Eduardo Braga, que como bom político hoje se diz “garanchoso”, a rivalidade é fundamental para entender como uma despretensiosa manifestação folclórica se transformou no megaevento de Parintins. “É uma rivalidade e também uma criatividade que só existem nesta ilha”, completa Braga, que este ano recebeu o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, e o ministro do Turismo, Walfrido Mares Guia.

No camarote da Coca-Cola, patrocinadora master do festival, um dos mais encantados era o presidente do Ibope, Carlos
Augusto Montenegro. “É preciso ser
muito mais criativo aqui do que no
Carnaval do Rio de Janeiro para contar a mesma história, por 40 anos e produzir tanta beleza.” A “mesma história” é o mito do bumba-meu-boi, que chegou à
Amazônia na mala da saudade dos migrantes nordestinos. O capataz
cede aos apelos da mulher grávida, desejosa de comer língua de boi, e
mata o animal mais querido da fazenda.
Na tentativa de ressuscitar o boi, os amazônicos trocaram o padre pelo pajé
e, aos poucos, o componente indígena
virou central. As alegorias e fantasias, que há três anos só têm penas e plumas sintéticas, ilustram lendas das nações da maior selva do mundo.

Até os anos 1960, as toadas – canções com letras modestas como os cordéis – incitavam ao confronto físico. Data desses tempos a tradição do brincante de um boi não citar o nome do outro, usando apenas o termo “contrário”. O Garantido cantava: “Se eu te pegar, boi contrário/Te esfolo igual a jacaré/Tiro toda a carne de fora/Só deixo a caveira em pé.” E o Caprichoso respondia: “(…) Olha povo contrário, você tem que manter respeito/Você mora no mato, num lugar pantanoso/Eu moro na cidade, caboclo imundo, invejoso…” A animosidade deu lugar ao respeito. Enquanto um boi se apresenta, a galera (torcida) do “contrário” adota um silêncio obsequioso. Se vaiar, perde ponto. Qualquer patrocínio é dividido e as logomarcas têm de se adaptar à disputa. O executivo Jack Corrêa, vice-presidente da Coca-Cola e anfitrião da festa, conta que a direção da multinacional em Atlanta não entendeu quando recebeu o pedido para imprimir também em azul a logomarca vermelha mais conhecida do mundo. Segundo Jack, a reação da matriz foi de espanto. Mas não houve alternativa.

As brigas de rua acabaram quando a cidade começou a ganhar rios de dinheiro com o boi, mas a rivalidade ainda produz situações curiosas. O estudante Renato Ferreira Júnior, 24 anos, é flamenguista e nunca teve uma roupa do time por proibição da mãe, Ana Maria Ferreira, uma dona-de-casa de 58 anos que não admite a cor do “contrário” em sua casa. “Ele não sabe, mas um dia desses eu achei um short rubro-negro na gaveta dele e joguei no lixo”, conta “Maria Azul”, como era chamada pelos pais na infância. Ela também torcia pelo Flamengo até o ano passado, mas o antagonismo das duas paixões a levou a mudar de time. Agora é Botafogo, cuja estrela lembra a marca na testa do boi Caprichoso. Ela é tão radical que até o esmalte e o batom são azuis, como as rosas artificiais sobre a mesa da varanda. O marido, Renato, também sofre. Ele é taxista e há poucos anos ousou comprar um carro vermelho sem consultá-la. Resultado: o automóvel jamais entrou na garagem. Teve de trocar. A aposentada Maria Ângela Faria, 82 anos, do Garantido, também é radical. Tudo na casa é vermelho e ela não aceita nem presente com a cor do “contrário”. Como o cloro deixa a água azulada, a piscina foi pintada de vermelho e esvaziada para sempre.

Virgindade – O aumento do contraste entre
luxo e miséria inspira os críticos ao gigantismo
do festival. Alguns dizem que ele deixou de ser folclórico para se carnavalizar. Outros apontam o aumento da violência e da prostituição como
alguns dos efeitos do fim da virgindade da ilha.
Mas o resultado é democrático.

O festival junta personagens tão díspares como o embaixador americano John Danilovich, cuja brancura da pele nem o sol escaldante da Amazônia pôde atenuar, e a recepcionista Ruth Rodrigues, 58 anos, que saiu de Manaus e viajou 20 horas de barco, com 100 fanáticos torcedores do Caprichoso, para ver a festa. Todos dormiam em redes, uma ao lado da outra. “Venho de qualquer jeito. O negócio é não perder o meu boi.”

A produção cultural e intelectual sobre o evento é intensa, assim como a
exportação do know-how dos artistas locais para as escolas de samba
no Rio e as festas folclóricas de outros pontos do Norte. Além dos artistas e engenheiros que dão os impressionantes movimentos às alegorias, Parintins exporta trabalhadores braçais como o aderecista Alanildo Lopes, 32 anos, que passa o ano viajando pelas festas amazônicas para ajudar a mulher, agente de saúde, a sustentar os quatro filhos. O profissionalismo muitas vezes supera a rivalidade e um mesmo artista muda de escola. Depois de 11 anos no galpão do Garantido, Alanildo está há quatro no Caprichoso.

Teses – Como não há lugar no Bumbódromo para todo mundo, o azul e o vermelho invadem as ruas 24 horas por dia. O movimento faz a alegria do comércio e do curioso sistema de transporte, a mototáxi, o principal meio de locomoção. Qualquer corrida sai por apenas R$ 2. “Eu faturo R$ 15 por dia, mas no festival ganho até R$ 150, mais de dez vezes”, diz o mototaxista Genival Ribeiro, 29 anos.

O contraponto dos bois e suas cores faz a festa dos intelectuais, que se debruçam em teses sobre o “sistema binário” de Parintins, onde o monoteísmo católico da origem do boi anda de mãos dadas com o politeísmo dos índios. “Aqui é Deus no coração e o diabo no quadril. É preto e branco, vermelho e azul, yin e yang. Isso é yunguiano, é Lacan puro!”, exacerba a publicitária e pesquisadora informal Liduína Moura. Alheios às pesquisas, os brincantes se dividem entre dois sentimentos. O torcedor do Garantido, que tem apresentado enredos de proteção à floresta, se apega ao marketing do “boi do povão”, enquanto o Caprichoso ressalta a nobreza de sua história, como na homenagem deste ano ao fundador, Roque Cid. O boi do Garantido é branco com um coração vermelho na testa. O do Caprichoso é preto e tem uma estrela azul. Este ano o boizinho do Garantido levou sua galera ao delírio ao desembarcar de um zepelim no meio da arena. Conquistou o tricampeonato por um placar apertadíssimo – 1.257,4 a 1.255,8 pontos – o que promete elevar ao máximo a temperatura no próximo ano. Haja coração. E estrela.