Um bebê rosadinho, de preferência do sexo feminino, saudável e sem antecedentes comprometedores ainda é o sonho da maioria das pessoas que pensam em adotar uma criança no Brasil. Mas a busca desse bebê – que muitas vezes preenche uma lacuna afetiva na família – passa por um processo de revisão. Um movimento mais generoso, encabeçado por personalidades nacionais e internacionais, começa a dar cores mais vivas a esse quadro. O casal de atores Marcello Antony e Mônica Torres, o humorista Juca Chaves, a cantora Elba Ramalho, o jogador Roberto Carlos e estrelas como Nicole Kidman, Tom Cruise, Sharon Stone e Angelina Jolie mostram que a alegria de adotar é ainda maior quando se coloca o olhar sobre as necessidades das crianças. Suplantando diferenças raciais e problemas de saúde, eles afirmam unânimes que filhos, adotivos ou naturais, são sempre do coração.

“A gestação de um filho biológico é algo mágico, mas ser escolhido por um bebê também é. A criança ideal é a que precisa ser adotada”, diz Mônica Torres, mãe biológica de Isabel, 19 anos, e adotiva de Francisco, dois. O marido, Marcello Antony, também declara amor imensurável por Francisco. “Adotamos um menino mestiço, com problemas de saúde hoje já superados. Nossa felicidade não poderia ser maior.” O casal se prepara para adotar uma menina que já tem nome, Clara, e até quarto, mas ainda não é uma criança definida. “Estamos em processo”, conta Antony. Mônica teve cinco abortos espontâneos, mas não adotou para suprir uma carência pessoal. “Planejamos ter filhos biológicos primeiro e depois adotar. A ordem apenas se inverteu”, diz a atriz.

Juca Chaves e a esposa, Yara, também não se cansam de comemorar a vinda das duas Marias que alegram a casa – Maria Clara, sete anos, e Maria Morena, cinco. Juntos há três décadas, o casal não planejava ter filhos, mas um relógio interno soou e eles começaram a visitar orfanatos. “Apesar de o Brasil ter uma população morena, todos querem lourinhas. Na Bahia, 80% são negros, a raça mais bonita do mundo. Não faria sentido adotar uma criança branca”, diz ele. Aos 66 anos, safenado recentemente, o humorista fala sério: “Com amor, tudo dá certo.” A cor da pele, a saúde frágil e principalmente a idade são realmente fatores excludentes. Quem olha os números de candidatos a pais e o de crianças na fila da adoção pode achar que a equação é simples. O número de casais é maior que o de crianças. Em São Paulo, no ano passado, havia 6.049 pais brasileiros, 231 estrangeiros e apenas 571 crianças e adolescentes. “Mas esses ninguém quer. Ou têm idade muito avançada ou algum comprometimento físico ou mental”, explica o juiz Reinaldo Cintra, secretário da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional.

Sonho – É por isso que ações como a da comissária de bordo paulistana Izamar Chamorro, 43 anos, causam perplexidade. Ela tem três filhos biológicos e 13 adotivos, dos quais seis têm defasagem cognitiva. Ela adotou grupos de irmãos e nunca se preocupou com a idade deles. “Sempre quis adotar. Ter família grande
era um sonho de criança”, diz. Para dar conta da família, ela contratou um cozinheiro e uma empregada. No mais, é uma mãe normal: “Procuro não faltar às reuniões
com professores. À meninada, dou muito amor, castigos e até uma palmada, se precisar”, diz.

Algumas pessoas realmente surpreendem pela disposição. O bombeiro curitibano Ozair de Jesus Ribeiro Filho, 45 anos, viveu uma experiência que o sensibilizou tanto que ele não parou mais de adotar. Depois de salvar um recém-nascido jogado numa vala, ele recebeu 18 crianças e adolescentes, mesmo já tendo filhos biológicos. Hoje, ele e a mulher, Rosicler, têm 21 filhos, entre oito e 21 anos. “Nós fomos nos ajeitando. Fizemos uma escola no quintal para atendê-los, que prosperou e tem hoje 300 alunos”, conta a mãe, a pedagoga Rosicler, 40 anos. Apesar de ter tantos filhos, Rosicler mostra corujice típica de mãe amorosa. Registra em um caderno as histórias e gracinhas de todos e, toda semana, faz uma “entrevista” com cada um. “É um momento nosso. Eles adoram”, diz.

O acolhimento às crianças órfãs ou que são afastadas de suas famílias por estarem em risco social é feito por abrigos públicos. O problema é que muitas delas ficam lá tempo demais. E, nesses casos, pesa a morosidade da Justiça. No Brasil, não há dados precisos sobre o contingente de crianças abrigadas, mas a maioria não está disponível para adoção. Segundo o livro O direito à convivência familiar e comunitária, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 87% dessas crianças têm família e 58% mantêm vínculo com pais ou parentes.

Estudo – O Instituto pesquisou 20 mil crianças e adolescentes em 589
instituições que recebem recursos federais. A maior parte delas fica na região Sudeste (49,1%). Os principais motivos de abrigamento são carência de recursos materiais (24,2%); abandono (18,9%); e violência doméstica (11,7%). Mais da metade dos abrigados são meninos (58,5%), afrodescendentes (63,6%) e têm
entre sete e 15 anos (61,3%). “Entra ano, sai ano, essas crianças continuam nos abrigos”, diz a psicóloga Lídia Weber, autora de cinco livros sobre o tema. “Algumas passam a infância inteira no abrigo. Depois dos três anos, é difícil ser adotado.” Na tentativa de minorar esse problema, tramita um projeto de lei na Câmara Federal que propõe, entre outras questões, prazos para o Judiciário resolver a vida das crianças sob proteção do Estado.

Mesmo nunca tendo pensado em adotar, o deputado federal José Roberto Arruda (PFL-DF), 51 anos, evitou que quatro crianças passassem por essas dificuldades. Ele tem três filhos naturais do seu primeiro casamento, quatro adotivos, e sua atual esposa, Mariane Vicentini, espera um bebê para novembro. E pela forma como as crianças chegaram até ele parece mesmo ter a mão do destino. Aos 35 anos, ouviu de um amigo de infância uma estranha proposta: “Se alguma coisa acontecer comigo, você cria meus três filhos. Se algo acontecer com você, eu crio os seus.” Uma semana depois, o amigo morreu atropelado – e ele cumpriu sua promessa. O quarto adotivo procurou o deputado porque precisava de óculos, mas Arruda encantou-se com o garoto órfão e levou-o para casa. Depois descobriu que o menino era filho de uma empregada de sua família. “Tenho orgulho deles. Trazê-los para casa foi a melhor coisa que fiz na vida”, diz.

Mudanças – Não se espera que um grande número de pessoas aja como Izamar, Ozair ou Arruda, mas já se pode comemorar pequenas mudanças. Um estudo feito pelo Centro de Capacitação e Incentivos à Formação (Cecif), que faz trabalhos de apoio à convivência familiar, mostra que, em 2002, 71% dos candidatos a pais queriam apenas crianças de zero a dois anos e 25% aceitavam de dois a cinco. Em 2004, os porcentuais foram 61% e 32%, respectivamente. Também há progresso no número de pessoas que não fazem restrições à raça. Apesar de 71% preferir crianças brancas e apenas 17% aceitar afrodescendentes, 12% já não fazem nenhuma exigência. Em 2002, estes representavam apenas 3% da pesquisa. “Essa mudança se deve ao trabalho de esclarecimento feito principalmente pelos grupos de apoio à adoção”, explica Gabriela Schreiner, diretora executiva do Cecif. “Os brasileiros começam a perceber que o importante é procurar famílias para as crianças, e não crianças para as famílias.”

Serviço: Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (www.angaad@uol.com.br); Alô Vida, da Fundação Orsa, (11) 4181-8866 e (96) 621-3500; Projeto Estrela guia, do Recife (PE), 0800 281 211.