Um mês depois da retirada dos últimos 14 mil soldados sírios que ocupavam o Líbano há 29 anos, o país deu um passo decisivo em direção à consolidação da democracia e da independência efetiva. Numa votação histórica, que teve sua quarta e última rodada no domingo 19, uma frente anti-síria integrada por muçulmanos sunitas, cristãos maronitas e drusos conquistou 72 dos 128 assentos da Assembléia Nacional (Parlamento). Mas a transição democrática libanesa ainda enfrenta muitos percalços e está longe de ser consolidada, como mostram os atentados que, nos últimos 15 dias, eliminaram dois opositores históricos da presença síria no país, o jornalista Samir Qassir e o líder comunista George Hawi. As vítimas morreram em conseqüência de violentos ataques a bomba, como o que matou em fevereiro o ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, também crítico da influência síria. Para muitos analistas, o serviço secreto de Damasco estaria por trás desses crimes.

Ironias – A coalizão anti-síria é liderada pelo sunita Saad Hariri, 35 anos, filho de Rafik Hariri. Ele e o líder druso Walid Jumblatt exigem a saída do presidente pró-sírio Emile Lahoud, cujo mandato terminava em 2004, mas foi prorrogado em novembro passado pelo antigo Parlamento, quando Damasco ainda dava as cartas em Beirute. Ironicamente, o grande defensor da permanência de Lahoud na Presidência é o general Michel Aoun, no passado um dos principais líderes da resistência militar maronita contra as forças sírias no Líbano durante a guerra civil (1975-1990). Por conta disso, o general passou 15 anos no exílio, só retornando ao Líbano em maio deste ano. Velha raposa da direita política libanesa, Aoun mandou o passado às favas e uniu-se aos políticos mais pró-sírios do Líbano, Omar Karami e Suleiman Franjieh, para conquistar espaço político próprio. Com um discurso messiânico e moralista, em que se destaca o combate à corrupção – o premiê Hariri era acusado de desvio de verbas governamentais –, o ex-militar conquistou parte do eleitorado cristão e dividiu a oposição. “Trouxeram Aoun de volta para usá-lo como instrumento de tensão entre os cristãos”, afirmou o druso Jumblatt. O Movimento Patriótico Livre de Aoun foi o terceiro colocado nas eleições parlamentares.

O afastamento do presidente libanês também é combatido, paradoxalmente,
por um dos maiores adversários de Aoun, o grupo xiita Hizbolá (Partido de Deus), misto de movimento guerrilheiro e partido político. A aliança entre o Hizbolá e a também milícia xiita Amal venceu no Sul do país e foi a segunda colocada nas eleições. Embora sejam maioria entre os muçulmanos, os xiitas sempre foram sub-representados no Parlamento libanês. O Acordo Nacional, que deu origem ao Líbano independente em 1943, baseava-se num censo de 1932, quando os cristãos eram maioria. Mas os muçulmanos logo se tornaram majoritários e a permanência de uma representação distorcida foi um dos motivos que desencadearam a guerra civil. Hoje, os muçulmanos são 62,4% da população (34% xiitas, 21,3% sunitas e 7,1% drusos) e os cristãos, 37,6%. Dos 128 membros do Parlamento, 50% são muçulmanos e 50% cristãos.

Historicamente marginalizados, os xiitas podem vir a ser a grande pedra no sapato do novo governo, que quer distância dos ex-senhores de Damasco. Soma-se a isso a pressão da ONU sobre o governo libanês para desarmar o Hizbolá, que continua lançando ataques esporádicos de foguetes contra Israel.

Mão síria – Os antigos senhores do Líbano, por sua vez, resistem a largar a rapadura. Segundo líderes da oposição, agentes da inteligência da Síria perambulam livremente pelo país. “Os sírios continuam controlando o Exército e as forças de segurança. Eles emitem ordens por fax, e-mail ou telefone”, afirmou um ex-oficial de alto escalão. Agentes da ONU que investigam o assassinato de Rafik Hariri dizem que o chefe da guarda presidencial, Mustafá Hamdã, foi o arquiteto do assassinato do líder comunista George Hawi, ocorrido na terça-feira 21. Como se
vê, a democracia ainda é uma planta tenra no país do cedro.