Assustado, o País descobriu
esta semana que a fogueira
política que consome o Palácio
do Planalto e o Congresso
Nacional é um foco de alta
combustão, cercado de querosene, açulado pela inépcia dos bombeiros e atiçado pela agressividade dos incendiários. Enquanto os termômetros despencavam no Sul, com o começo oficial do inverno na terça-feira 21, a temperatura política era tórrida em Brasília: no final da tarde, José Dirceu, após definhar meses na função de homem mais poderoso e temido do governo Lula, transmitiu o cargo de chefe da Casa Civil a Dilma Rousseff com um tom belicoso, apropriado ao clima de guerra que vive o centro do poder. A nova ministra, “camarada de armas”, que foi presa e torturada no regime militar, ganhou na sutileza: “Conheci meu querido companheiro de lutas há 40 anos, como líder estudantil”, lembrou. Horas antes, num palanque em Luziânia, nas proximidades de Brasília, o próprio presidente Lula mostrou ser mais parecido com Dirceu do que com Dilma: “Eles não sabem com quem estão lidando!”, criticou, acrescentando que a oposição, na verdade, “está com medo hoje é da reeleição”. Perdendo o foco do que realmente interessa à sociedade brasileira, a apuração das denúncias sobre a existência de um mensalão no Congresso, o presidente ajudou a aumentar a tensão.

À noite, no Jornal Nacional, a secretária Fernanda Karina Somaggio desfez o que dissera à Polícia Federal e confirmou tudo o que denunciara à revista ISTOÉDinheiro, acusando seu ex-patrão, o publicitário Marcos Valério de Souza, de ser um dos elos entre a cúpula do PT e os mensalistas da propina. A deputada federal licenciada Raquel Teixeira (PSDB-GO), atual secretária de Ciência e Tecnologia de Goiás, confirmou na quarta-feira 22, na Comissão de Ética da Câmara, a denúncia de Roberto Jefferson: foi assediada em 2004 pelo líder do PL, Sandro Mabel (GO), para mudar de partido em troca de R$ 1 milhão de luvas e uma mesada de R$ 30 mil. “Não aceitei nem quis saber de onde vinha o dinheiro”, afirmou. A seguir, o acusado confirmou a conversa, mas negou a oferta: “Convidei sete, oito ou nove deputados a ingressarem no PL. Mas não fiz nenhuma proposta financeira”, replicou Mabel. O relator da comissão está pensando em fazer uma acareação entre os dois para descobrir quem diz a verdade.

Mentiras – O pivô da CPI dos Correios, Maurício Marinho, flagrado num vídeo embolsando R$ 3 mil como chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material da ECT, começou seu depoimento, na tarde da terça-feira 21, mentindo. Mentiu tanto que seus três advogados ameaçaram abandonar sua causa. Depois de uma providencial pausa na madrugada, Marinho amanheceu com a língua destravada – e a memória subitamente recomposta. Diante da pressão, sucumbiu: “Preciso de segurança. Tenho dois filhos e um neto e fui seguido mais de uma vez”, desabafou, revelando o mesmo temor da secretária Fernanda Karina, que confessou ter sido ameaçada por um motoqueiro em Belo Horizonte para negar o que sabia. Com a proteção garantida, Marinho citou 23 contratos supostamente suspeitos na milionária contabilidade dos Correios, envolvendo várias empresas de grande porte e personalidades como o ministro da Comunicação da Presidência, Luiz Gushiken, e o secretário-geral do PT, Sílvio Pereira. Gushiken poderia explicar contratos de publicidade da estatal, sugeriu Marinho, e o burocrata petista teria interesse direto na empresa HHP, que fornece impressoras para os Correios.

Os contratos mais suculentos são coordenados pela Diretoria de Tecnologia: “Não há uma obra que não seja coordenada por essa diretoria. É um orçamento de R$ 700 milhões ou R$ 800 milhões por ano. É essa que dizem que é ligada ao dr. Sílvio”, acusa Marinho, ao lembrar que José Dirceu foi o ministro responsável pela nomeação dos seis principais diretores dos Correios, embora a presidência fosse atribuição do PMDB. O relator da CPI, Osmar Serraglio (PMDB-PR), considerou o bombardeio “superficial e generalista”, mera tática de defesa. “Continuo achando que ele está escondendo a verdade”, desconfia.

Reestréia – Na quarta-feira, com aura de pop star, José Dirceu voltou à planície parlamentar e reestreou na tribuna da Câmara, falando para um plenário inusitadamente esvaziado pela oposição – com a presença de pouco mais da metade dos 513 deputados da Casa. Para compensar, as galerias estavam cheias de petistas empunhando bandeiras vermelhas e entoando velhos hinos de guerra, que soavam forçados diante do constrangimento que consome o PT neste incêndio ético. “Este governo não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção”, recitou de novo Dirceu, sem mencionar as suspeitas que emascularam o governo e o fizeram perder seu cargo. “Terrorista”, berrou do plenário o ex-capitão linha dura Jair Bolsonaro (PP-RJ), antes de provocar a bancada e a platéia petista com um saco preto de lixo batizado de “Mensalão do Lullão”. Foi o que bastou para detonar o empurra-empurra. O presidente Severino Cavalcanti (PP-PE) berrou mais alto, pedindo ordem e a evacuação da torcida uniformizada do PT. “Esta claque do Zé Dirceu só serviu para provocar”, condenou o presidente do PMDB, Michel Temer, (SP), que presenciou tudo. “Dirceu fez um discurso de autista, não de estadista”, emendou o ex-petista Fernando Gabeira (PV-RJ). Paulo Delgado (PT-MG), ensinou: “Congresso não é lugar para claque. Como local de reflexão, não comporta nem vaia nem aplauso.”

No dia seguinte, Dirceu prestou depoimento à Corregedoria da Câmara, que investiga as denúncias de Roberto Jefferson sobre o suposto mensalão. Ele contradisse as declarações do presidente licenciado do PTB: declarou nunca ter conversado sobre o assunto com Jefferson, mas admitiu que conhece o publicitário Marcos Valério, acusado pelo petebista de ser o operador do esquema. O corregedor, deputado Ciro Nogueira (PP-PI), admitiu a possibilidade de fazer uma acareação entre os dois.

E enquanto Dirceu prestava esclarecimentos aos colegas, a portas fechadas, o governo obtinha uma vitória no Senado. O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Casa estava obrigada a indicar os nomes para a CPI dos Bingos, que investigaria o ex-braço direito de Dirceu, Waldomiro Diniz, mas governo e oposição se acertaram: indicam os nomes, mas protelam o início dos trabalhos. “Não poderemos ter seis ou sete CPIs ao mesmo tempo. Ou não funcionaria bem, ou o Congresso não funcionaria bem”, disse o senador Aloizio Mercadante (PT-SP).

Apoio – Para acompanhar os acontecimentos de perto e cuidar da reforma ministerial, Lula adiou a viagem que faria para a Colômbia e Venezuela. Na noite da quinta-feira 23, surgiu em rede nacional de televisão: “Garanto a vocês que, se houver gente que tenha cometido desvios de conduta, usarei toda a força da lei”, declarou. E garantiu: “Se tem um governo que tem sido implacável no combate à corrupção, desde o primeiro dia, é o meu governo. Nunca o Brasil viu tanta gente importante e poderosa sendo presa.”

Na sua luta para reverter a crise, o presidente já conta com ajuda de antigos companheiros. No final da terça-feira, depois da troca de guarda entre Dirceu e Dilma, Lula recebeu no Salão Oval um manifesto de 43 movimentos sociais e ONGs que classifica as denúncias, carimbadas de “factóides”, como uma “tentativa de desestabilização política do governo”. Entre os sindicalistas e aliados havia duas mães-de-santo, que benzeram Lula. Ele ganhou da sambista Lecy Brandão um atabaque adornado com fitas brancas e vermelhas, as cores de Xangô, o orixá da Justiça na umbanda. “Nos preocupa a gente lutar tanto pelas mudanças e tudo isso ser ameaçado por algo que não é culpa do presidente. As respostas virão com as investigações”, disse Lecy. É o que se espera no rescaldo do incêndio. Saravá, presidente!