Está se desenhando no Brasil uma situação que dá claros sinais de retrocesso no campo do preconceito racial. A idéia, surgida há dois anos e que agora está prestes a virar lei, estabelece nas universidades uma reserva de cotas para negros, destinando a eles algo em torno de 40% das vagas. Mais grave ainda: essa idéia de cotas, materializada no projeto sectário e pomposamente intitulado Estatuto da Igualdade Racial, do senador petista Paulo Paim, ameaça se alastrar para além dos bancos das universidades – bancos e empresas públicas e privadas teriam de empregar forçosamente 20% de negros. Há em tudo isso um aspecto negativo, tanto no caso do projeto de lei de cotas para as faculdades quanto no caso do Estatuto da Igualdade Racial que as estendeu para o mercado de trabalho: está se sepultando no Brasil o critério justo da meritocracia. A questão é matemática, embora governo e políticos prefiram tratá-la demagogicamente como ideologia. Vamos às contas. No vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2003, duas cotas foram reservadas: uma de 50% aos alunos originários de escolas públicas, outra de 40% destinada a negros. Resultado: 57% do total dos aprovados ingressaram pelo sistema de cotas, até porque elas se sobrepuseram. O caso tornou-se público, ganhou as manchetes dos jornais e foi parar na Justiça. E não era para menos: houve vestibulando de medicina que teve o mérito de fazer 91 pontos e foi reprovado. Houve vestibulando de relações públicas que teve o demérito de fazer apenas 50 pontos e ingressou na universidade através das cotas. Aprovou-se o despreparo, reprovou-se a qualidade.

“É preciso que as pessoas entrem na universidade pelos seus méritos. Não é possível tirar o lugar de alguém que não se reconhece como negro para pôr alguém que declara ter essa cor”, diz o antropólogo Gilberto Velho. Como no Brasil uma pessoa não pode dizer qual é a cor de outra pessoa porque isso é tipificado como crime, cada um declara ter a cor de pele que bem entender – e isso já deu brecha para que o jeitinho brasileiro desmoralizasse o sistema de cotas. Foi também na Universidade do Estado do Rio de Janeiro que ficou famoso o caso da aluna judia de origem polonesa Rachel Grynszpan. Ela é branquíssima, mas se declarou negra para ser cotista. Entrou em medicina. Até o IBGE tem de seguir o método de autodeclaração da cor para realizar os seus censos e, dessa forma, no campo das etnias, o Brasil não conhece o Brasil: estima-se, mas apenas estima-se, que existam 53,7% de brancos, 38,4% de mulatos e somente 6,2% de negros.

A solução, como propõe o senador Paim, seria então montar uma rígida classificação de raças? É claro que não. O conceito de raça já foi derrubado há muito tempo nos países civilizados, porque embutia nos preconceituosos o julgamento genético e desembutia nos tiranos seus ideais de eugenia e raça pura. É também nisso que o pacote de projetos de cotas, que está às vésperas da votação final no Congresso, é um retrocesso no perigoso terreno do preconceito. Com ele, volta-se ao anacrônico conceito de raça. “O Estado não pode legislar instituindo oficialmente as raças. Um país como o nosso, que nunca legislou sobre a questão nem contra nem a favor, se aceitar o estatuto estará criando as raças oficialmente”, diz a antropóloga Yvonne Maggie.

Olhe-se a questão do mercado de trabalho e se terá o conflito racial com a chancela oficial – conflito que não se viu no Brasil nem na época da escravidão, quando os colonizadores portugueses traficaram da África para cá, entre os séculos XVI e XIX, cerca de 3,5 milhões de negros. O Estatuto da Igualdade Racial diz que as empresas com mais de 20 empregados terão de manter uma cota de no mínimo 20% para trabalhadores afro-brasileiros. Tomando-se como base uma empresa com mil funcionários, ela teria de expandir 200 vagas ou demitir 200 empregados para se adequar. Como os empresários vão agüentar financeiramente o tranco das contratações? Como os colegas dos brancos demitidos olhariam
os negros cotistas? Como esses negros se sentiriam emocionalmente, sabendo que desempregaram 200 pessoas? Mais ainda: quais cargos os negros vão ocupar? Entrarão nas empresas em postos de direção ou, por exemplo, como auxiliares de escritórios ou operadores de xerox? É bem provável que sejam mais factíveis as duas últimas alternativas. Só que, aqueles que exercem tais funções podem não ter qualificação profissional, ganham pouco e são pobres. E mais uma vez enterra-se o mérito – na via contrária, o mesmo absurdo seria mandar para a rua um negro competente para empregar um branco, somente pelo fato de ele ser branco. Com o mercado profissional espremido como está em praticamente todas as áreas, vale também indagar: qual a sua cor? Seja o senhor branco ou negro, cederia de bom grado, nesse exato momento, o seu emprego para alguém apenas pelo critério étnico?

“Os setores produtivos já estão engessados por uma série de fatores que vão desde os altos juros e a enorme carga tributária até o excesso de burocracia governamental”, diz Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. “Do ponto de vista da igualdade racial, a obrigatoriedade de cotas, além de oficializar o racismo, vai contra as leis de mercado.” Há pessoas brancas, negras, enfim de todas as cores, que são mais ou menos capazes e devem ocupar postos de trabalho em razão dessa capacidade profissional. A lógica do Estatuto da Igualdade Racial é, assim, tão perversa como a lógica que norteou a abolição da escravatura em 1888. Autoridades e políticos brasileiros sempre gostaram de resolver as questões da democracia social na base de decretos, acham que na prática vale o que está registrado no papel – talvez seja a tradição do recibo anotado do jogo do bicho, com a diferença de que esse vale mesmo. É claro que a escravidão tinha de ser abolida porque é um dos mais hediondos crimes contra a humanidade, e não é isso que se discute. Só que a abolição se deu por um decreto da princesa Isabel (Lei Áurea) que jogou, do dia para a noite, cerca de 700 mil negros (5% da população da época) num mercado de trabalho que não tinha a menor estrutura de absorver essa mão-de-obra.

É em nome dessa “dívida com o passado escravagista”, que alguns intelectuais endossam o Estatuto da Igualdade Racial, defendendo o sistema de cotas nas universidades e nas empresas. “O estatuto está em consonância com os tratados internacionais que o Brasil assinou para combater o racismo e a desigualdade”, diz Humberto Adami Santos Jr., presidente do Instituto de Advocacia Racial. “A intelectualidade vai querer brecar nossa vitória”, diz o frei Davi Raimundo dos Santos, um dos líderes do movimento a favor das cotas. Os intelectuais criticados pelo frei são, sobretudo, os 114 (entre eles muitos artistas) que assinaram um manifesto contra o projeto do senador Paim. Também o Poder Judiciário se divide, mas parte do Ministério Público do Trabalho já disparou uma metralhadora de ações contra os bancos – 27 procuradores-chefes, representantes dos 27 Estados do País, estão preparando centenas de ações contra bancos privados, acusando-os de discriminação racial – o valor de cada causa está arbitrado em R$ 32 milhões. Se todas as instituições financeiras, que atualmente empregam entre 2% e 15% de negros, perderem as ações, terão de arcar ao todo com R$ 864 milhões. Sabe-se que muitos bancos e empresas já estão desenvolvendo programas de inclusão racial, fornecendo aos seus funcionários negros cursos que o capacitam a promoções e melhores salários, compensando a sua precária formação escolar que geralmente se dá através do ensino público. Fazem, assim, aquilo que o governo deveria fazer se tivesse de fato a vocação política de cuidar dos excluídos dando-lhes educação de base – a questão a ser olhada de frente é a da desigualdade e da pobreza, não a da cor. “A exclusão atinge o negro e o branco, a pobreza não escolhe raça”, diz Sebastião Tojal, presidente da Comissão de Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados de São Paulo. Ou seja: a democracia social no Brasil exige uma ampla cirurgia, o Estatuto da Igualdade Racial e suas cotas são apenas um band aid para tapar a ferida da desigualdade que continuará a sangrar.