Para o cearense Aldemir Martins, 82 anos, trata-se de um dia como qualquer outro. Em mangas de camisa, ele se debruça sobre a tela e, valendo-se de um anel de pistão de carro, faz o contorno de um sol, cercando o círculo branco de inconfundíveis tons de azul. “É o céu do mar do Ceará, meu filho”, esclarece. Este é o segundo trabalho que cria, depois de um luminoso gato amarelo, após a temporada de três semanas no hospital devido a uma arritmia cardíaca. Martins tem de ficar em forma porque está às vésperas de embarcar em um carrossel de homenagens que cercarão a exposição Aldemir Martins por Aldemir Martins – sete décadas de sucessos artísticos, que o Museu de Arte de São Paulo (Masp) abre na quinta-feira 23. Durante a mostra será lançado o livro do mesmo nome (BestPoint, 256 págs., R$ 280), editado por Benemar Guimarães, também curador da mostra.

São, ao todo, 180 obras entre desenhos, gravuras, pinturas e aquarelas. A
escolha do Masp não vem por acaso – o museu tem um papel fundamental na trajetória do artista. Nascido no distrito de Ingazeiras, no município de Aurora, perto do Crato, no Cariri, e criado em Guaiúba, perto da capital cearense, depois de
servir o Exército em Fortaleza, entre 1941 e 1945, dando baixa como cabo-pintor, Martins deslocou-se para o Rio de Janeiro, seguindo o pintor e conterrâneo Antonio Bandeira. Um ano depois, foi para São Paulo, atraído pelo convite do crítico Paulo Emílio Salles Gomes. Em 1949, decide estudar história da arte com ninguém
menos que Pietro Maria Bardi, que necessitava de monitores para o museu que acabara de fundar, justamente o Masp. E foi na instituição, então sediada no centro da cidade, que Martins se enamorou por Cora, sua colega no curso de gravura do mestre Poty Lazzarotto.

Na entrevista de Cora para o livro, ela recorda o “olhar que sugeria uma curiosidade de certo modo atrevida”. Pudera. Ela era uma paulista casada, sem filhos. Ele, um nordestino também casado, pai de Pedro. Mas não teve jeito. Cora abandonou 13 anos de um casamento “plácido” para correr o risco de se juntar àqueles “olhos escuros e sempre brilhantes”, logo se mudando para a casa em uma rua tranqüila próxima ao Parque do Ibirapuera, onde tiveram Mariana e onde vivem até hoje. Porque atrevido Martins sempre foi. Agraciado nas três primeiras Bienais de São Paulo, o artista recebeu em 1956 o prêmio Presidente del Consiglio dei Ministri como melhor desenhista internacional da Bienal de Veneza e não parou mais. Expôs na Europa e nos Estados Unidos, e viveu dois anos na Itália com a família, bebendo na fonte. Mas sem esquecer quem ele era.

Ilustrações – Em tudo o que faz, o Ceará, o sertão, o mar estão presentes. Orgulha-se de ter lido “sete vezes” Os sertões, de Euclides da Cunha, uma das obras que ilustrou. Suas séries de cangaceiros podiam ser “líricas” ou “truculentas”. Pintou gatos, “porque as mulheres gostam”, e galos, a pedido de um diretor de rinhas – brigas de galo. Mas o primeiro deles foi recusado. O rude empresário o considerou “muito viado”. O cromatismo exuberante surgiu “por necessidade de mercado”, pois era capaz de pintar uma praia ensolarada usando apenas preto-e-branco. Seu traço intrincado já era op art, embora Aldemir não se preocupasse com as modas. Descobriu tintas acrílicas na Londes psicodélica de 1966, onde fora assistir à Seleção Brasileira na Copa do Mundo.

Aldemir tornou-se um designer sem ser designer, povoando com seu traço, desde os anos 1950, copos, pratos, embalagens de pizza, sabonetes, máquinas de escrever, caixas de fósforo e até aberturas de novela. Criou objetos, esculturas, painéis para edifícios. Procurou outros suportes muito antes que essa busca se transformasse em conceito. Foi multimídia muito antes de Andy Warhol. Em seu ateliê em Perdizes, presente de Cora, apinhado de obras de colegas-irmãos – com destaque para um globo formado por ex-votos pendurado no teto, do conterrâneo Aderson Medeiros –, o artista afirma que Pablo Picasso é o pai de “nós” todos. Feliz, autografa o primeiro exemplar de Aldemir por Aldemir. A quem seria dedicado? “A mim, é claro!”, responde o artista, que volta a pintar o seu mar cearense.