Capturar o instante exato em que as pessoas ou as coisas se mostram por inteiro era o que Henri Cartier-Bresson definia como “o momento decisivo”, aquele segundo único no qual o fotógrafo consegue roubar a imagem do tempo para fixá-la na eternidade. João Primo Carloni, editor de fotografia de ISTOÉ falecido em São Paulo no sábado 8, aos 44 anos, seguia ao pé da letra a lição daquele mestre, considerado o maior fotógrafo do século XX. O trabalho de João Primo é uma demonstração prática do preceito “colocar no mesmo ponto de mira o olho, a cabeça e o coração”. As miradas desse olhar singular estão espalhados em quase 20 mil fotos, a maioria inédita, algumas das quais foram objeto de várias exposições e de um livro (Terramar, 1999).

Ao longo de 21 anos de carreira, João Primo fez imagens no Brasil e em diversos países, entre eles Itália, Suíça, Estados Unidos, Japão, Emirados Árabes Unidos, além da Antártica. Em todos esses lugares, o olhar do fotógrafo quase sempre se confundiu com o de seu objeto – outra máxima do humanista Cartier-Bresson, para quem o fotógrafo deveria se sentir de alguma maneira implicado com quem ou o que enquadra através do visor. “Quando eu trabalhava como repórter fotográfico, meu cotidiano acabou se tornando a própria viagem, o país estranho, o povo diferente”, dizia João Primo. “E, ao fotografar o cotidiano dos outros, eu acabava revelando também o meu.”

A capacidade de observação e a preocupação com o cotidiano, isso João adquiriu precocemente nas viagens de trem que fazia com o avô Odílio, hoje com 94 anos. “Desde muito pequeno ele me levava a viajar e me educou o olhar. Muitas coisas acontecem entre um destino e outro. Enquanto esperava um trem, eu observava e registrava”, lembrava. Talvez fosse por isso que ele não tinha muita paciência com a crítica especializada. João ria muito (a irreverência e o bom humor eram sua marca registrada) quando lia aquelas sisudas análises na mídia. Achava que os críticos “viajavam” ao explicar imagens com um amontoado de palavras que pouco acrescentavam ou mesmo desviavam o olhar do observador do objeto enfocado.

Entre a miríade de celulóides que compõem seu trabalho destacam-se alguns grandes momentos selecionados para a exposição Cotidiano, realizada na Pinacoteca do Estado em 2001. Uma delas mostra a chegada dos marinheiros na Grand Central Station de Nova York, com seus quepes brancos flutuando sobre o uniforme preto, foto que bem poderia ter saído do O Encouraçado Potemkin, de Sergei Einsenstein. Outra revela dois idosos, de costas, observando o vôo de um triângulo de ultraleves no céu limpo do interior paulista. Uma das mais dramáticas clica um homeless (sem-teto) debruçado sobre o lixo em San Francisco, contemplado pelos olhos aterrorizantes de um cartaz.

Para João Primo, uma grande foto nascia da realidade. Isso pode parecer óbvio, mas exige sabedoria e modéstia. Sabedoria para descartar “influências” acadêmicas no seu trabalho e modéstia para aprender com colegas ou até com lambe-lambes do interior. E ele, que teve na janela de um trem sua primeira objetiva e que, como o poeta, “desejava impossivelmente o possível”, deixou a cena da vida para fixar sua imagem na eternidade.