CHATÔ, O PAI DA TV O empresário discursou na transmissão aos primeiros 200 aparelhos do País. Hoje 96,4% dos lares tem TVs – são mais de 100 milhões de unidades (Crédito:Divulgação)

A data para a primeira transmissão de televisão no Brasil estava marcada: 18 de setembro de 1950. Um mês antes, durante uma reunião, o engenheiro americano Walther Obermüller, responsável técnico, perguntou informalmente quantos aparelhos de TV havia no País. O pai da iniciativa, o jornalista paraibano Assis Chateaubriand, poderoso empresário à frente de um império de jornais e rádios, os Diários Associados, respondeu: nenhum. Chatô tentou importar os aparelhos, mas pelo trâmite legal eles levariam dois meses para chegar. O empresário pediu a ajuda do então presidente Eurico Gaspar Dutra, mas o prazo para a entrega seria o mesmo. A saída foi contrabandear 200 aparelhos, prometendo o primeiro ao próprio presidente Dutra. Os outros 199 foram espalhados em pontos públicos da cidade de São Paulo.

O PRIMEIRO BEIJO, 1952 A cena foi protagonizada por Vida Alves e Walter Foster na novela “Sua Vida me Pertence”. A atriz tambéu deu o primeiro beijo gay da TV, em 1963 (Crédito:Divulgação)

No dia da transmissão, na hora H, após a benção do bispo de São Paulo, uma das três câmeras falhou. Mesmo assim, no horário anunciado, a TV Tupi Difusora se tornou a quinta estação de TV do mundo, atrás apenas dos EUA, Inglaterra, França e México. Suas antenas do Alto do Sumaré, na zona oeste da capital paulista, emanaram a primeira imagem transmitida no País. A atriz Sonia Maria Dorce, de seis anos, vestida de índio, o mascote de TV Tupi, anunciou: “Boa noite. Está no ar a televisão do Brasil”. Em seguida, Chatô discursou e nomeou a poetisa Rosalina Coelho Lisboa como “a madrinha da TV”. Foi ao ar, então, o primeiro programa da TV brasileira, “TV na Taba”, com o ator Lima Duarte e músicas cantadas por Ivon Cury e Lolita Rodrigues. Nascia a TV brasileira.

A linha do tempo da televisão no País teve uma série de marcos históricos. Em 1953, nascia TV Record; em 1954 foram transmitidas as primeiras partidas de futebol e o País se reuniu na frente da telinha para chorar a morte do presidente Getúlio Vargas. Em 1963, o programa de auditório de Silvio Santos começou a ser exibido nas tardes de domingo pela TV Paulista. Em 1965, entrou no ar a TV Globo. A TV Bandeirantes veio em 1967; dois anos depois, foi a vez da TV Cultura. Com o videotape, a televisão não precisava mais ser 100% ao vivo, e a qualidade dos programas começou a crescer. Surgiram atrações de sucesso como “Rancho Alegre”, humorístico estrelado por Mazzaroppi; o “Grande Teatro Tupi”, com peças televisionadas; o jornalístico Repórter Esso, que se autointitulava “testemunha ocular da história”; “O Céu é o Limite”, show de perguntas e respostas com Aurélio Campos. Logo a televisão passou a fazer parte essencial do cotidiano do brasileiro. Pesquisa de 2018 apontou que havia pelo menos um aparelho de TV em 96,4% dos lares brasileiros – hoje são mais de 100 milhões de unidades em todo o País.

HEBE E SILVIO Hebe Camargo, uma das primeiras atrizes em cena, e Silvio Santos: desde 1963 o apresentador está no ar aos domingos com um dos programas de auditório mais populares do País (Crédito:Divulgação)

Humor e novelas

Nos anos 1960 a TV brasileira foi dominada pelo humor. Foi nessa década em que surgiram nomes como José Vasconcelos e Chico Anysio, prodígio que havia participado aos 16 anos de um concurso na rádio Guanabara, no Rio de Janeiro. O destaque de um de seus quadros, “A Escolinha do Professor Raimundo”, levou Chico a ganhar o seu próprio programa, “Tim Tim por Tantan” e, depois, o “Chico Anysio Show”. A próxima estrela do humor na TV seria o exótico Chacrinha, personagem do apresentador Abelardo Barbosa. Sua fama era tão grande que ele logo ganhou dois programas de auditório semanais: “Discoteca do Chacrinha”, às quartas-feiras, e “Buzina do Chacrinha”, aos domingos. Programas de auditório como o de Chacrinha e Silvio Santos marcaram para sempre a história da TV brasileira. No programa “Noites Cariocas”, na TV Rio, outro comediante conquistava seu espaço: Ronald Golias, dirigido por Carlos Alberto da Nóbrega – que até hoje apresenta o humorístico “A Praça é Nossa”, no SBT.

RODA, RODA, RODA E AVISA: Chacrinha O programa de auditório era caótico e divertido: considerado fora do “Padrão Globo de Qualidade”, saiu do ar nos anos 1970, abrindo caminho para o surgimento do Fantástico

Em 1963 nascia o formato mais brasileiro da TV: a telenovela. A pioneira foi “2-5499 Ocupado”, estrelada por Tarcísio Meira e Glória Menezes. Desde então, o público se rendeu aos folhetins exibidos diariamente. Entre as produções de grande audiência, a mais marcante foi “O Direito de Nascer”, exibida em parceria pela TV Tupi e TV Rio. É provável que ela seja até hoje, em números relativos, o maior sucesso de todos os tempos: seu último capítulo teve 99,75% dos televisores ligados. Em 1º de setembro de 1969 entrava no ar o canal que revolucionaria todo o mercado brasileiro: a TV Globo. Apesar do alto investimento, a audiência no início foi tímida. O cenário só mudou quando o empresário Roberto Marinho contratou dois executivos da TV Rio, Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Aos poucos, instalava-se na emissora carioca o conceito que viria a ser conhecido como “Padrão Globo de qualidade”, imposição estética e técnica que a levaria a superar as concorrentes e garantiria um crescimento astronômico nas décadas seguintes.

Enquanto a TV Record apostava no Festival da Música Popular Brasileira, que revelaria nomes como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, a Tupi e a Globo investiam nas novelas. A Tupi emplacou “Beto Rockefeller”; a Globo, “Irmãos Coragem”, de Janete Clair, com um elenco de jovens estrelas como Tarcísio Meira, Glória Menezes, Cláudio Marzo, Regina Duarte e Cláudio Cavalcanti. Os anos 1970 trouxeram para a Globo novos nomes do humor, como Jô Soares, Agildo Ribeiro e Paulo Silvino, além de Os Trapalhões. É nessa década que ocorreu também uma grande revés para a emissora: apesar de diversas tentativas, a novela “Roque Santeiro”, de Daniel Filho, com Lima Duarte, Francisco Cuoco e Betty Faria, foi proibida pela Ditadura Militar – a história só seria exibida em 1985, em um remake. O prejuízo só não foi maior graças à sequência de novelas de grande audiência, como “Selva de Pedra”, “Pecado Capital” e “Escrava Isaura”.

“BOA NOITE” “Até 1992, o jornalismo na televisão tinha de seguir a linha da sisudez do âncora Cid Moreira”, lembra Valéria Monteiro, primeira mulher a apresentar o Jornal Nacional, na Globo (Crédito:Divulgação)

Nos anos 1980, o mercado estava em ebulição: Silvio Santos comprou o canal TVS, que viraria o SBT; a Bandeirantes investia pesado no esporte, com a contratação do narrador Luciano do Valle; a Rede Manchete contratou Maytê Proença a peso de ouro para lançar a minissérie “Marquesa de Santos”; a TV Record foi comprada pelo Bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus. Novos apresentadores caíam no gosto do público: Xuxa Meneghel, com foco no público infantil e Fausto Silva, na Globo; Gugu Liberato, no SBT. Nos anos 1990 com a chegada da TV a cabo por assinatura, o mercado renasceu com um número enorme de canais, como a MTV, voltada ao público jovem. Foi uma mudança tão grande que algo semelhante só aconteceria anos depois, com a chegada ao Brasil do mercado de streaming. Mas essas já são cenas dos próximos capítulos.

ENTREVISTA
Lima Duarte

“Éramos jovens, loucos e maravilhosos”

A televisão chegou ao Brasil há 70 anos e você estava lá. Qual é a primeira memória daquela época?
Eu tinha vinte anos. Fazíamos “rádio com imagem” ou “imagem com rádio”. O Chateaubriand, um louco, delirante, o grande responsável por trazer a televisão para o Brasil, tinha baixado uma ordem dizendo que a gente não podia enfraquecer os quadros do jornalismo e contratar gente de lá, afinal ele era dono de muitos jornais e emissoras de rádio e não queria mexer nisso.

Como os profissionais reagiram?
Sofremos muito preconceito, acho que isso acontece com a TV até hoje. Havia o teatro brasileiro de comédia, uma coisa finíssima só para os aristocratas e barões do café. E havia o teatro de arena, que ainda não tinha se firmado como veículo de expressão. Então olhamos um para a cara do outro e perguntamos: “e aí, o que vamos fazer?” E daí fizemos o que a gente sabia fazer melhor: rádio, mas com imagem.

PIONEIRO Lima Duarte: sua carreira como ator se confunde com a história da TV brasileira (Crédito:Cesar Alves)

E os primeiros programas, mostravam o quê?
O Walter George Durst tinha um programa de rádio chamado “Cinema em Casa”. Ele adaptava os filmes em cartaz na época, como “Crepúsculo dos Deuses”, com William Holden e Gloria Swanson. Ele recebia dos estúdios o roteiro em inglês, traduzia e encenava. Adaptamos à TV.

A TV era um aparelho fixo, as pessoas tinham que parar para assistir. Hoje ela vai com o público para onde o público for. O que representa essa diferença?
É o que o Fellini disse, né? “Televisão é um belo eletrodoméstico.” Naquele tempo aumentou muito o consumo do café. Porque o “televizinho” vinha na casa de quem tinha TV para assistir, a gente servia um cafezinho. Hoje o mundo mudou, e vamos assistindo às mudanças. Algumas aplaudindo, às vezes chorando.

O que acha do consumo de vídeos pelo celular, uma tela pequena?
Acho que o celular é um complemento, mas a tela é ruim para ver, né? Perde um pouco da dignidade. Imagino alguém vendo “Crepúsculo dos Deuses” ou Shakespeare no celular. Eu não acredito que se consiga ver alguma coisa importante desse jeito, a não ser o recado da namorada, uma foto, fofocas, fake news.

Você lançou um canal no Youtube e tem um perfil no Instagram. O que acha das redes sociais?
Foi uma forma que encontrei para interagir com o público. Mas também vejo que elas servem para divulgar burrice, ignorância, estupidez. Não sei se servem para divulgar a profundidade do espírito humano. É tudo superficial, rapidinho.

E os programas de auditório, que importância tiveram para a TV?
Antigamente existia o animador de auditório, mas ele não servia só para jogar coisas para a platéia. Ele imaginava o público, pensava no que eles estavam esperando. Hoje tem muito filósofo posando de animador de auditório na TV. Alguns são cultos, inteligentes, mas não sei se o público está muito disposto a ouvi-los.

Como você vê a evolução das telenovelas?
O Walter George Durst criou toda a dramaturgia naquela época, e era praticamente igual a tudo que existe hoje. Tudo já foi feito, nós fizemos.

Qual foi a atuação mais marcante que você viu?
Não foi na TV, mas no circo. Eu trabalhava com minha mãe em Bebedouro, interior de São Paulo, em 1945. Eu estava na coxia, ela era atriz, estava encenando “Maria Cachucha”, do Joracy Camargo. De repente o público começou a cochichar e a se dispersar.

Mas o que aconteceu?
Ela me chamou: “menino, vai ver o que está acontecendo”. Eu fui. Tinha acabado a guerra. Eu voltei e contei a ela, no ouvido. Minha mãe se virou e começou a declamar: “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante…” O povo a ouviu, e começou a acompanhá-la. Então pensei: “não foi a guerra que acabou, foi minha mãe que acabou com ela”. Foi lindo.