Por causa da rotina de vida monástica, da fé religiosa e da determinação férrea, é quase irresistível reduzir o trabalho do procurador Luiz Francisco de Souza a uma cruzada contra o mal. Na verdade, é preciso de bem mais que fervor missionário para reunir os feitos deste procurador, um brasiliense de 39 anos, dez de carreira e seis de Ministério Público Federal. A revelação da maioria dos casos recentes de corrupção tem o dedo do procurador. Por causa da determinação de Luiz Francisco, que decidiu gravar e divulgar a conversa do então presidente do Congresso Nacional, senador Antônio Carlos Magalhães, soube-se da violação do painel de votações do Senado. Por conta da tenacidade do procurador em apreender documentos, interrogar testemunhas e pesquisar papeladas, surgiram informações suficientes para demonstrar o envolvimento do ex-senador cassado Luiz Estevão na obra superfaturada do TRT de São Paulo. Também pelo trabalho de Luiz Francisco, o deputado cassado Hidelbrando Pascoal (PFL-AC), condenado por assassinato, foi preso no mesmo instante em que perdeu o mandato.

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Luiz Francisco adora uma briga. Uma delas, em 1990, ficou marcada na memória de colegas de militância universitária, que o apelidaram de “o grande quadro”. Foi um bate-boca com João Herculino, dono de uma faculdade particular de Brasília onde o procurador se formou em direito, por causa do preço das mensalidades escolares. Herculino expulsou-o do curso. Horas depois, Luiz Francisco tinha em mãos uma liminar autorizando seu retorno às aulas. Uma outra discussão produziu uma queixa-crime do dono da faculdade, sumariamente arquivada. “Eu o chamei de lacaio do imperialismo”, recorda-se, rindo. Para ter acesso aos dados financeiros da instituição, conseguiu que um sócio-cotista minoritário o nomeasse seu representante nas assembléias. Depois, usava as informações na negociação das mensalidades, que acabaram reduzidas em 20%.

O ânimo guerreiro foi reforçado pela formação intelectual, influenciada por pensadores socialistas, marxistas e os chamados teólogos da libertação. Entre suas referências estão “o velho Marx”, Frei Betto e Alceu Amoroso Lima. “Graças a Deus, sou de esquerda e distributista”, diz ele, que tem um impiedoso conceito da direita: “São os vilões. Querem perpetuar o status quo e são cúmplices da brutal desigualdade social.” Mantém no gabinete um quadro de Joana D’Arc e uma imagem de São Miguel Arcanjo com o diabo a seus pés, empunhando a espada. Gosta do santo por causa da remissão à luta por uma causa nobre. Pelo mesmo motivo, tentou entrar na Ordem dos Jesuítas, com a qual manteve estreito contato entre os 17 e os 23 anos. Chegou ao noviciado, mas um grave atropelamento interrompeu a carreira religiosa. Luiz Francisco ficou uma semana em coma e levou seis anos para recuperar o movimento de um dos braços. A postura encurvada é vício. “Por causa da miopia acentuada (sete graus nos dois olhos) e os óculos defasados”, confessa, revelando enorme desapego com as próprias coisas.

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Já era velho conhecido dos procuradores antes de se tornar um deles. Ainda na faculdade, municiava o Ministério Público com representações contra abuso no reajuste de mensalidades. Como advogado da Caixa Econômica Federal (CEF), remeteu preciosas informações sobre a obra irregular do Canal da Maternidade, no Acre, e contra o ex-deputado Sebastião Curió, ex-xerife de Serra Pelada que tentou receber da CEF indenização de R$ 113 milhões. Curió perdeu a ação e o contrato da obra do canal foi anulado. Entre os colegas da procuradoria, a solidariedade é o seu traço mais lembrado, mas na família, desde pequeno, chamava a atenção o gosto pelo estudo e pelo debate. “Esse menino vai ser um Rui Barbosa”, dizia o avô Francisco, como relembra Vera, a irmã mais velha. A paixão pela leitura começou ainda criança com os gibis, que enchiam quatro gavetões sob a cama. Hoje, os livros enchem o quarto, seu gabinete e um pequeno apartamento, no qual mantém mais de oito mil volumes. Já leu ou consultou a maioria deles. Lê em inglês, francês, italiano e alemão. Luiz Francisco lê até quando anda nas proximidades do apartamento onde mora com os pais, em um bairro de classe média de Brasília. Na adolescência, treinava caratê. Hoje, além de andar, costuma nadar no lago Paranoá.

Força familiar

– Os casos polêmicos em que se meteu até hoje renderam várias ameaças de morte contra ele e sua família, que as encara com determinação. “Ele tem que ir em frente”, diz a irmã. É o que ele faz. “Quando surgiram ameaças no Acre, estendi minha permanência lá por seis meses. Não me intimido.” Somadas ações fiscais e judiciais movidas por Luiz, o ex-governador do Acre Orleir Cameli já amargou um prejuízo de R$ 60 milhões, dos quais R$ 40 milhões devidos em indenização material e moral aos índios kampa, por exploração ilegal de madeira. Hidelbrando Pascoal entrou na sua lista negra quando, nomeado secretário de Segurança, ampliou a ação do esquadrão da morte que chefiava no Acre. A segunda prisão de Luiz Estevão, há quatro meses, mostra a importância que o procurador dá à estratégia. Encarregados de fazer uma busca e apreensão nas empresas do ex-senador, o oficial de Justiça e o delegado estavam cuidadosamente instruídos, até nos diálogos, para produzir os elementos necessários à prisão, no caso de resistência ou desacato. Na mosca. A chave da dedicação de Luiz Francisco está na sua definição para o trabalho: “Onde tiver um oprimido, um injustiçado, deve haver um procurador ao lado deste. É seu papel social e dever constitucional.” Mas ele acredita que há muito a percorrer. Propõe uma profunda alteração nas investigações: “O inquérito policial sofre influência dos governos. Quando interessa, se designam delegados, agentes. Quando não, falta tudo. A Polícia Federal deve trabalhar sob a supervisão do Ministério Público, como no EUA”.