O endereço, a decoração, os pratos fartos e os garçons cheios de
paciência continuam os mesmos, mas há algo estranho no ar. Fundado em 1874, o restaurante Lamas, no Flamengo, foi sempre um templo da esquerda etílica da zona sul carioca. Sediou os confrontos aguerridos entre brizolistas e petistas em 1989, quando o Rio de Janeiro parecia decidir quem levaria a faixa presidencial. Como o Brasil não freqüenta o Lamas, Fernando Collor acabou vencendo, mas o restaurante resistiu com bandeiras vermelhas até explodir de euforia com Lula em 2002. Dois anos e meio depois, quem chega ao salão barulhento e enfumaçado não vê mais camisetas ou bottons com a estrela de cinco pontas e dificilmente encontra um socialista elevando a voz em defesa do governo. “Meu sentimento é de decepção e fracasso”, define a médica Alice Daflon, 49 anos. “O meu é de perda”, emenda a estudante gaúcha Juliana Carneiro, 20 anos. Em duas horas de polêmica, ISTOÉ acompanhou o debate que rachou a mesa, composta por mais quatro petistas constrangidos com as denúncias que ameaçam o outrora imaculado Partido dos Trabalhadores.

As dúvidas centrais, que não deixam o chope descer redondo como antes, são duas. A primeira: o PT aderiu definitivamente à “receita neoliberal” ou está na transição para criar a “contra-hegemonia”? A segunda: o PT ainda pode cumprir a promessa de mudar as relações políticas no País ou é impossível romper a corrupção? Ao fim do duelo entre frustrados e esperançosos, um consenso: Lula precisa aprovar a reforma política no Congresso Nacional o mais rapidamente possível.

A jovem Juliana, exemplo típico dos militantes que carregaram anos a fio o andor do PT sem ganhar um centavo, começa dizendo que já decidiu se filiar ao PSOL, o partido liderado pela senadora Heloísa Helena (AL), que foi expulsa do PT depois de um longo processo de enfrentamento com a cúpula. A médica Alice também tem uma certeza: reeleição, nem pensar. “Foi tudo para o brejo. Se tivessem me avisado que iriam aderir ao esquemão, eu teria votado no (José) Serra (PSDB). Pelo menos faria algo pela saúde.” O produtor Rico Cavalcanti, 43 anos, pede o segundo chope e tenta injetar esperança. Para festejar a posse de Lula, ele partiu em carreata com as duas filhas e vários amigos rumo à capital e hoje acha difícil explicar os acontecimentos às meninas, de 12 e nove anos, mas mantém a confiança. “O governo descentralizou a política cultural para fora do eixo Rio–São Paulo. O problema é que o (Gilberto) Gil está à míngua.” Ao seu lado, o professor Wanderley Quêdo, 46 anos, diz que o governo “cometeu o erro estúpido de jogar fora os 53 milhões de votos e optar pela arrogância do isolamento.”

Autismo – Wanderley é dirigente do sindicato dos professores e diz que seus sentimentos em relação ao governo oscilam entre “perda” e “esperança”. A esperança é de que o presidente demita alguns ministros e recupere nomes como Frei Betto, Maria da Conceição Tavares, Paul Singer, Carlos Lessa e Cristovam Buarque. Ele identifica uma espécie de autismo no núcleo do governo, “como os puxa-sacos de Hitler nas últimas horas do nazismo”. O amigo Rico lembra que, no Rio, os petistas têm decepções extras com Lula, como o descaso federal com a segurança pública e o desprezo pelo Estado na montagem do governo, principalmente no primeiro escalão.

“A questão do paulistério é importante, mas a principal é que o medo de ser reprovado pelas elites aprisionou o presidente. Ele ficou encaixotado pelo medo”, rebate Alice. Wanderley insiste no diagnóstico de que o problema são as más companhias. “Precisava jantar na casa desse Roberto Jefferson? Como é que ele freqüenta a casa de um cara desses, meu Deus?” A radical Juliana aproveita para atacar. O problema, segundo ela, não é de intenção, mas de projeto: “O povo votou em um projeto de nação e ele trocou por um projeto de poder. Não aproveitou a força popular para fazer o enfrentamento e jogou fora o esforço de 20 anos dos petistas na formulação de projetos.” Alice concorda: “O que fizeram com tanto amadurecimento teórico? Era brincadeira? Nossa geração desembarcou no PT com suas esperanças, mas e os jovens de hoje, o que vão fazer?” Com a disposição de quem tem a vida pela frente, a gaúcha diz que a única saída é começar tudo de novo, em um partido revolucionário. “Vou lutar sempre pelo que acredito.”

A mineira Camila Miranda, 30 anos, doutora em letras, toma as dores do PT. Para ela, o jogo político “sempre foi assim” e o esquema só foi revelado agora porque o governo é mais vigiado. “Não há como mudar sem alterar a estrutura partidária. O importante é que o governo tirou a economia do risco e faz uma ótima política externa.” Rico ressalta que nunca tantos corruptos foram presos como agora. “Ele segurou a inflação com juros que matam a classe média”, retruca o sindicalista Wanderley. Ele joga na mesa uma questão que o atormenta, mas que a médica e a estudante já não se interessam em responder: “O que vamos fazer para evitar a volta dos conservadores? Vamos fazer o que com nosso governo?” Alice volta ao ataque e compara Lula ao argentino Néstor Kirchner. “As pesquisas medem o apoio a Kirchner para enfrentar o FMI, mas aqui nunca vemos pesquisas sobre o que o povo pensa. O povo foi deletado e o governo só tem olhos para o joguinho do Congresso.” Camila, a petista convicta, rechaça a comparação: “Leve em conta a diferença cultural. O analfabetismo na Argentina é menor e o povo lê, participa.”

“Um canalha” – O último a chegar é Antônio Amaral, 39 anos, professor de uma escola “de esquerda” em Santa Teresa. “Fiquei preocupado quando o Roberto Jefferson insistiu que Lula não sabia do mensalão. Pode ressuscitar o preconceito de que ele não está preparado para governar porque não tem estudo.” Wanderley concorda: “É estranho quando um canalha diz que um homem probo é inocente. Toda a fala do Roberto Jefferson é para desestabilizar, como uma ratazana acuada.” Abre-se uma catarse de impropérios contra o deputado, mas Lula logo volta à mesa. “Não sei se ele está preservado. Ninguém que conheço quer a reeleição do PT”, descarta a desiludida Alice.

Camila tenta uma última cartada contra o desânimo, dizendo que “não se deve confundir o governo com o PT”. O tiro sai pela culatra e a resposta é o tom melancólico de Wanderley: “É esse divórcio que causa nossa tristeza.” Três segundos de silêncio e olhares perdidos nas tulipas de chope, até que Rico joga na mesa um apelo ao consenso: “Que tal a saideira para discutir a reforma política?” É a segunda unanimidade da noite no Lamas.