Dois anos e 167 dias depois de subir, glorioso, a rampa do Palácio do Planalto carregando a fama de homem forte do presidente Lula, José Dirceu de Oliveira e Silva acabou sucumbindo ao soco desferido pelo petebista Roberto Jefferson. Sangrando e nocauteado, o ex-ministro foi obrigado a abandonar sua trincheira, na Casa Civil, na quinta-feira 16, mas em um discurso bélico de dez minutos, feito às 18h25 no suntuoso Salão Leste do Palácio, anunciou: vai voltar para o combate encarnando o espírito de “Daniel”, seu codinome nos velhos tempos de Cuba, quando treinou guerrilha entre 1969 e 1975. Disse que deixa seu coração no governo Lula. “Mas não deixo a minha alma, ela vai comigo para a luta. Eu sei lutar na planície.” Em frente ao Planalto está o ringue, onde Dirceu desembarca com sede de vingança na quarta-feira 22, quando assumirá a sua cadeira de deputado federal, conquistada com mais de meio milhão de votos nas eleições de 2002. A oposição o aguarda, esfregando as mãos. “Não vejo a hora de ver o embate entre ele e Jefferson”, disse o líder do PFL no Senado, José Agripino (RN). Em seu apartamento, o franco-atirador Jefferson, que na sexta-feira 17 deixou a presidência do PTB, comemorou ao receber a notícia da queda de seu adversário. Já afinava sua voz para o canto de guerra.

Quebra de decoro – A partir desta semana, todas as atenções estarão voltadas para as batalhas da CPI dos Correios e na Comissão de Ética da Câmara, onde Jefferson é processado por quebra de decoro pelas acusações de pagar mensalão a parlamentares. Enquanto descia a rampa do Planalto, a oposição já pensava em como jogar “Daniel” na cova dos leões: a intenção é abrir processo de cassação também contra o ex-ministro. “Para mim, não há diferença entre José Dirceu e Roberto Jefferson “ – atacou o vice-líder do PFL na Câmara, ACM Neto (BA). Mas o líder do PT, Arlindo Chinaglia (SP), contra-atacou: “O governo perde, mas a vinda de Dirceu nos fortalece.” O comando petista planeja organizar uma tropa de choque no Congresso para proteger o PT e o governo dos tiros de bazuca das CPIs: cerca de dez deputados de elite, comandados pelo general Dirceu. Outros que poderão se juntar à tropa de choque são ministros-deputados. A saída de Dirceu foi o primeiro passo de uma ampla reforma ministerial e administrativa, que incluiria o deslocamento de combatentes para o Legislativo, a principal trincheira do momento. Entre eles, Aldo Rebelo (Coordenação Política), Eduardo Campo (Ciência e Tecnologia), Eunício Oliveira (Comunicações) e Ricardo Berzoini (Trabalho). Lula planeja abrir espaço para o PMDB e para o PP – de olho na maioria parlamentar para enfrentar a batalha das investigações.

A idéia é formar uma tropa de choque capaz de enfrentar e vencer não só a guerra com Jefferson, mas também o monstro da desarticulação da base governista no Congresso. O PMDB, por exemplo, começou a articular sua retirada do exército de Lula, unificando os grupos antes governistas e oposicionistas. Para trazer o partido de volta à sua trincheira, Lula pretende pôr um fim nas conversas individualizadas que em geral têm como base o toma-lá-dá-cá por cargos, nacos do Orçamento e até “mensalões”. Quer um acordo institucional e está até mesmo disposto a negociá-lo com o presidente do partido, Michel Temer (SP), antes tratado como inimigo.

A saída do ministro que mais encarnava a alma e o rosto do PT no governo estava sendo planejada para o fim de junho. “Mas os fatos atropelaram os planos”, contou um interlocutor do presidente, referindo-se às entrevistas de Jefferson, nas quais mirou sua metralhadora na direção de Dirceu e no coração do PT: o presidente, José Genoino, o tesoureir,o Delúbio Soares, e o secretário-geral, Silvio Pereira. Depois de ter sido atingido diretamente com um soco de Jefferson, Dirceu mudou de opinião: não queria que sua saída fosse vista como uma confissão de culpa. Lula queria livrar-se do alvo-Dirceu, mas Genoino ficou ao lado do companheiro-ministro, em uma conversa que os três tiveram na Granja do Torto, no domingo 5.

O alvo – Dirceu sai ferido depois de ter resistido ao primeiro grande tiro de bazuca, há um ano e quatro meses, quando foi atingindo em cheio pelas denúncias contra seu então assessor Waldomiro Diniz. Resistiu, mas saiu cambaleante e transformou-se num contínuo alvo, transformando-se num incômodo para Lula. Saiu machucado também pelos vários embates que travou com companheiros de partido e do governo, como o ministro Luiz Gushiken (Comunicação e Gestão Estratégica), o “China”. Quem não reparou em seu sorriso rasgado após a despedida de Dirceu no Salão Leste do Planalto, lotado por jornalistas e seus assessores, muitos com lágrimas nos olhos? O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, próximo de Dirceu no palanque da despedida, tinha um olhar reflexivo. “Ele se manteve eqüidistante nessa briga nos últimos dias”, disse um petista, lembrando que Palocci não fez coro aos que pediam a cabeça dos petistas acusados por Jefferson. O ex-ministro saiu magoado com Lula. Horas antes de pedir demissão, respondeu aos jornalistas, que queriam saber sobre sua saída: “Alguém está preocupado comigo? Eu não sou tão importante assim.” Pediu demissão por carta – aceita também por carta. Ambas em tons afáveis: “Querido companheiro e amigo”, dizia o demissionário. “Querido Zé”, respondeu Lula. As cartas foram trocadas logo depois de um almoço de Dirceu com ministros petistas no Planalto, quando todos discutiram a tática para defender o partido. “Lula teve que fazer isso para preservar o seu projeto de reeleição. Depois, vamos preservar as pessoas”, comentou um interlocutor de Lula. Outro petista que esteve no Planalto naquele dia dava o tom do que vem pela frente: “Vai vir chumbo grosso na direção dos tucanos.”

Estrela de ouro – “Vou voltar como militante-dirigente ao PT, que é, na verdade, a minha vida. Vou voltar para junto, ao lado, e apoiando o presidente Genoino”, afirmou Dirceu no seu adeus, com sua estrela de ouro do PT cravada na lapela. E garantiu que sai de mãos limpas e coração sem amargura. Dentro da sede do PT, em São Paulo, muitos culpavam Lula pela crise, lembrando que o presidente errou muito ao demorar a fazer a reforma ministerial prometida para novembro de 2004. “Essa crise tem nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva”, dizia um dirigente. A cúpula do PT não queria ceder às exigências do Planalto e da bancada do PT de afastar Delúbio e o secretário-geral, Silvio Pereira, de seus cargos. “Se isso acontecer, eu também me afasto”, chegou a afirmar Genoino. Talvez, agora, Delúbio, Silvinho e Genoino se convençam a seguir Dirceu e também fazer um recuo estratégico.