*Manuel sempre percebeu que sua mãe era diferente das mães de seus amigos. Às vezes sentia vergonha, geralmente quando ela falava “enrolado” perto deles. No começo, esses amigos davam risada nessas situações. Depois, deixaram de ir à casa de Manuel. Na escola, caçoavam dele. Sua mãe foi ficando cada vez mais “esquisita”, limitando muito sua vida social e levando sua auto-estima a zero. Não dava para convidar um amigo para ir a sua casa estudar. Todos perceberiam o que ele se negou a perceber: sua mãe (que morreu quando ele tinha 26 anos) era “esquisita” por causa dos efeitos do uso excessivo do álcool. Era alcoolista. Ele se escondeu da vida para esconder sua mãe, constantemente embriagada.

Manuel não está, absolutamente, sozinho em meio a essa realidade. Milhares de crianças e adolescentes convivem com algum parente com a doença no Brasil. Pesquisadores estimam que eles podem representar até 11,2% da população do País, ou quase 20 milhões de brasileiros. O problema é que, nos últimos tempos, as mulheres começaram a aparecer com força cada vez maior nas estatísticas dessa doença progressiva e incurável, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

Estudos recentes mostram que crianças e adolescentes filhos de pais com o vício estão mais sujeitos a desequilíbrios emocionais e psiquiátricos. Normalmente, o primeiro problema identificado é um prejuízo severo na auto-estima, com repercussões negativas sobre o rendimento escolar e as demais áreas do funcionamento mental. Esses adolescentes e crianças tendem a subestimar suas próprias capacidades e qualidades. Os males gerados pelo alcoolismo são a terceira causa de morte no mundo. “É uma doença sutil, que pode avançar até a morte”, diz Alice. Ela bebeu durante 30 anos, parou há quatro e está decidida a não voltar. Começou por volta de 17 anos. “Ao longo do tempo passei da “cervejinha” aos destilados. Quando acordei, bebia praticamente 24 horas por dia”, conta ela. Não conseguia dormir. Às vezes, passava pelo que ela chama de apagão, quando via “muitas aranhas e cobras”, imagens que se confundiam com uma intensa mania de perseguição. Seu único filho, o jovem Eduardo, diz que “enterrou sua juventude no vício da mãe”.

Catarina, 43 anos, é uma brasileira linda, tipo Sonia Braga antes das plásticas. Sorri o tempo todo, deixando ver seus dentes perfeitos. Começou a beber aos 13 anos. “Aos 35, passei a associar outras drogas ao álcool.” Só foi pedir ajuda a uma associação de alcoólicos anônimos quando não conseguia parar em pé. Embora tenha deixado de beber há alguns anos, sob o ponto de vista clínico, não se curou da doença. Parar de beber é a vitória maior para o dependente, mas a doença não acaba. Se ele voltar a dar uns goles, em pouco tempo recupera um ritmo igual ou até maior do que o mantido antes da pausa. “Não existe ‘ex’ nessa história”, admite Catarina, hoje coordenadora de um grupo de ajuda a dependentes em São Paulo. Ela sabe que a identificação precoce do alcoolismo geralmente é prejudicada pela negação dos pacientes quanto à sua condição de alcoolistas. Além disso, nos estágios iniciais é mais difícil fazer o diagnóstico, pois os limites entre o uso social e a dependência nem sempre são claros. Quando o diagnóstico é evidente e o paciente concorda em se tratar é porque já se passou muito tempo e diversos prejuízos foram sofridos. Neste ponto, fazê-lo parar de beber costuma ser uma tarefa árdua.

Para iniciar um tratamento de alcoolismo é necessário que o paciente preserve em níveis elevados a auto-estima sem, contudo, negar sua condição de doente. Muitos não conseguem esse comportamento na prática. Felizmente, a dona-de-casa paulistana Marina, 65 anos, superou tudo isso com força de vontade. O caminho adotado por ela para combater a doença é o mais recorrente: as associações de alcoólicos anônimos. Marina bebeu por 20 anos. Hoje, quando muito, degusta aquela cerveja sem álcool. Começou na faixa de idade em que se inicia a maioria das mulheres, entre 26 e 34 anos. Há um grande número de separadas entre as dependentes, mas os especialistas ainda não sabem se, estatisticamente, essa condição é mais causa ou efeito no caminho para o alcoolismo.

O início do consumo de álcool cada vez mais cedo pelas mulheres brasileiras fez diminuir a relação de dependência entre homem e mulher. As pesquisas revelam que a dependência alcoólica na mulher possui características próprias. Ela começa a beber mais tarde, bebe menos e com menor freqüência, mas o risco de desenvolver dependência é mais alto. Doenças como cirrose hepática, hipertensão, desnutrição e hemorragia gastrointestinal são desenvolvidas mais rapidamente entre as mulheres – em média com 12 a 15 anos de dependência, contra 17 a 20 anos nos homens. De acordo com o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), filhos de mulheres que consomem álcool em excesso durante a gravidez estão sujeitos à síndrome alcoólica fetal, que pode provocar seqüelas físicas e mentais no recém-nascido. Isa, 19 anos, é filha de uma alcoolista de 42. “Você sofre com isso?” Ela chora, temendo ofender a mãe com o seu sim. A jovem não namora, não leva amigos à sua casa e não sai porque, com um pai já desanimado, tem medo de que aconteça alguma coisa. Acha que culpar a mãe pelas restrições que enfrenta é complicado quando se sabe que o alcoolismo é uma doença. Mas não nega que seus sonhos não existem mais. Considera-se infeliz. Portanto, para começar um tratamento – seja ele qual for –, o melhor mesmo, no caso das mulheres, seria olhar para os filhos e, num momento de lucidez, perceber a infelicidade que eles carregam desde o dia em que perceberam ter em casa uma mãe com um problema tão devastador.

*Os nomes em itálico são fictícios