Começou o ano letivo de 2009 na rua Antenor Rangel. Será longo e difícil, porque ela não passa de uma ladeira sem saída nas encostas da Gávea. E o bairro é um antigo enclave rural da zona sul, que só se urbanizou definitivamente na segunda metade do século passado. Ninguém ali está pronto para o desafio.

Até poucos anos atrás, a Gávea era a cara de seus moradores. Eles sabiam sua história toda – inclusive, que Antenor Rangel foi um farmacêutico. Carregavam memórias pessoais do tempo em que a rua Artur Araripe era a Chácara dos Araripe e havia fábricas ou mansões onde hoje há shopping centers ou condomínios. Meninos pescaram no Rainha, um rio que agora mergulha em canais subterrâneos numa ponta do bairro para reemergir na outra, com cheiro de esgoto.

Na Antenor Rangel não há sequer uma sala de aula. É uma rua de paralelepípedos e poucas casas. De dia, sempre foi frequentada por micos e pássaros, que descem em bandos para variar a dieta de jacas e insetos servida pelas árvores da Gávea. De noite, costuma ser visitada por gambás e ouriços-cacheiros, que usam como ponte-pênsil os fios da iluminação pública, equlibrando-se entre os postes sobre cães e gatos.

Sem crescer um tijolo, a Antenor Rangel deu para inchar ultimamente, desde que os colégios e as universidades da vizinhança, todos privados e caros, incorporaram a rua como seu estacionamento quase exclusivo. E assim ela passou a ter, no máximo, dois ou três meses de férias por ano. Aí, descansa. E até parece que voltou a ser a mesma. As ervas, que andavam escondidas debaixo das latarias, continuam brotando entre as pedras do meio-fio. O rio, embora sujo, de uma hora para outra apresenta suas margens cobertas por samambaias baldias e flores anônimas. E se restaura o direito de ir e vir em mão dupla, enquanto os carros que sobem não precisam se espremer para dar passagem aos que descem.

As férias duram pouco, menos do que qualquer estação do ano. Com as aulas, retornam os carros dos alunos e professores, pois ninguém mais ensina ou aprende sem eles. Seus donos aparentemente têm compromissos matinais inadiáveis com a melhor educação possível. E a pressa os torna mal-educados.

Como estacionamento gratuito, há também fins de semana em que a Antenor Rangel se profissionaliza. É quando a organização de festas nos colégios e seminários nas faculdades requisita manobristas para pastorear os automóveis. Aí, não sobra um metro quadrado para o pedestre. O trânsito, que a rigor ela não tem, fica tão pesado que às vezes nada mais se move na rua. As pessoas largam o volante para defender palmo a palmo o território ocupado no espaço público. As buzinas disparam. E as intenções educacionais, que supostamente estavam na origem dessas reuniões extracurriculares, derivam para um bate-boca de boteco.

Nada disso teria a menor importância se, nessas ocasiões, a Antenor Rangel não se convertesse numa perfeita miniatura do Rio de Janeiro, cobrindo a cidade inteira com uma lente de aumento. Ela fica bem aos pés da Rocinha. E a geração que um dia terá que continuar o debate sobre as favelas cariocas está aprendendo neste momento a dominar o asfalto pela mesma cartilha usada nos morros.