Com lançamento marcado para setembro, o novo filme de Ruy Guerra, O veneno da madrugada, tem um personagem anão. No musical que escreve sobre Dom Quixote, Guerra vai dividir Sancho Pança em dois personagens, um deles, anão. A fixação desse moçambicano de 73 anos por anões se explica: até os 17 ele media 1,31 m. “Era um oxunzinho”, lembra, com humor. Seu pai chegou a contratar uma junta médica para fazer o filho crescer. Cogitaram-se injeções de crescimento que poderiam causar gigantismo ou problemas mentais. Mas Guerra foi salvo por um primo médico e, no ano seguinte, cresceu até 1,70 m, como nos livros de realismo fantástico de seu amigo, Gabriel García Márquez. O 15º longa de Guerra se baseia, aliás, no livro homônimo de Gabo, o quarto sobre a obra do escritor colombiano.

A história protagonizada por Leonardo Medeiros e Juliana Carneiro da Cunha se passa em um lugarejo qualquer da América Latina. A chegada de um tenente
cria um clima de terror. “São metáforas dos jogos de poder da relação humana”, sintetiza o cineasta. Embora os personagens sejam os mesmos, o filme está longe do livro. “É mais realista do que fantástico”, afirma Guerra, sem saber como o amigo vai receber sua obra. Nada amistosa, entretanto, é sua relação com outro famoso escritor latino-americano, Mario Vargas Llosa. Em 1971, a Paramount lhe propôs um filme sobre Canudos e sugeriu Llosa como roteirista. O escritor peruano morava em Barcelona, onde Guerra passou três meses adaptando o farto material que coletou. O filme furou e, dois anos depois, foi lançado Guerra do fim do mundo, com os mesmos personagens e idéia de Ruy Guerra, sem mencionar o cineasta.
“É um filho da puta”, fulmina.

O temperamento aguerrido combina com alguém que aos 12 anos já tinha lido toda a obra de Dostoievski. Livros, por sinal, são o que não falta em seu apartamento de dois dormitórios no Jardim Botânico, Rio de Janeiro. A inquietação tinha uma origem: Ruy Guerra era um cidadão de segunda classe. “Para ir a Portugal tinha que tirar passaporte. Aos 19 anos foi estudar cinema em Paris, vindo para o Brasil sete anos depois. O resultado foi uma espécie de limbo. “Não sou brasileiro, português ou moçambicano”, magoa-se. Há, porém, um saldo positivo: “Ser mestiço dá uma força”, afirma com indisfarçável sotaque português.

Homem de muitas facetas, o Ruy Guerra ator está no filme Casa de areia, de Andrucha Waddington. Seu personagem arrasta as Fernandas (Torres e Montenegro) para a solidão de um deserto nos Lençóis Maranhenses. Há dez anos dedicado professor de cinema, escreve também o livro A ciência e a malandragem do plano-seqüência, que não será um templo teórico da sétima arte, embora se aprofunde no tema. Ele próprio é um personagem histórico, ao participar da criação do cinema novo, aos 30 anos, com jovens cineastas como Glauber Rocha e Cacá Diegues.

Baralho – Mais do que lembrar de Os cafajestes, seu trabalho de estréia no
País, pelo primeiro nu frontal (Norma Bengell), Guerra considera o filme pioneiro do cinema novo. A conversa flui melhor depois que entra em cena o Pernet branco, amarga bebida italiana. Quem o vê como intelectual, se surpreende com suas opções de lazer. Adora jogar cartas e ver televisão. “Só não vejo novela, são todas muito ruins”, diz. O vigor é surpreendente para os 73 anos, preservados por temporadas em spas, aversão a drogas e moderação na comida – e na bebida, apesar dos vários cálices de Pernet. Seu humor é um mistério até para as filhas Janaína, da mitológica Leila Diniz, e Dandara, de Cláudia Ohana. “Ninguém sabe quando estou brincando ou falando sério”, orgulha-se, como um personagem dos livros à sua volta.

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