Depois de todo mundo saber como Anakin Skywalker se transformou em Darth Vader, chegou a vez de acompanhar por que outro cidadão resolveu esconder sua identidade debaixo de uma máscara negra. Com a diferença que, agora, não se trata de um vilão intergalático, mas de um super-herói urbano ocupado em eliminar a escória da sociedade. Batman begins (Batman begins, Estados Unidos, 2005), que faz seu vôo inaugural – e mundial – na sexta-feira 17, conta justamente como o milionário Bruce Wayne vira o Cavaleiro das Trevas. Custou US$ 180 milhões. O nascimento do Homem-Morcego, cuja missão é limpar as ruas de Gotham City da corrupção e do crime, vem assinado por um nome improvável, o diretor Christopher Nolan, de filmes-cabeça como Amnésia e Insônia. Mas o que poderia ser um pesadelo para os aficionados do personagem, criado em 1939 por Bob Kane, se revela exatamente o melhor dos cinco títulos da série. E tira do limbo uma marca que parecia esgotada. Enfiado em uma armadura mais leve e maleável, pela primeira vez o super-herói, vivido por Christian Bale, consegue olhar para os lados sem ter que virar o corpo todo. Ganha também humanidade e atitude amedrontadora sob a pele de um ator não escolhido exatamente pelos lábios e queixos – únicas partes visíveis debaixo da carranca de morcego. Sem falar que perdeu os mamilos protuberantes da roupa de George Clooney, que nos bastidores de Hollywood eram tidos como signo gay.

Feras – Tivesse parado aí, ainda seria pouco.
Mas os acertos de Nolan foram maiores. De olho na receita de Super-Homem – o filme, que trazia como coadjuvantes nomes do peso de Marlon Brando e Gene Hackman, o cineasta cultuado no meio independente selecionou um dream team admirável. O mordomo Alfred, encarregado da educação do menino Bruce – órfão depois do assassinato dos pais – e fiel escudeiro de sua dupla identidade, ficou nas mãos do britânico Michael Caine, cujo humor discreto é um respiro na agitação. Ao ver na tevê um pega entre a polícia e o batmóvel, Alfred comenta com Bruce Wayne algo como “não era para isso que você estava se aprontando”. A mesma cena existe em Batman e Robin (1997), mas, com a observação irônica de Caine, o que era uma passagem banal brilha no tom espirituoso.

No time de feras aparece ainda o desiludido e incorruptível tenente James
Gordon (mais tarde promovido a comissário), que ganhou o rosto maleável
de Gary Oldman, com bigodinho aparado e olhar desencantado. Numa passagem memorável, Batman lhe passa a direção do batmóvel para que ele o ajude numa missão. Seus olhos saltam do enfado para o entusiasmo juvenil. E tem ainda Liam Neeson na pele de Henri Ducard, o mentor e mestre de artes marciais de Bruce Wayne; Rutger Hauer (o andróide de Blade runner, que Nolan fez a equipe inteira assistir) como o avarento executivo Richard Earle, responsável por tornar a Wayne Enterprise uma indústria bélica; e o sempre classudo Morgan Freeman como Lucius Fox, o chefe da divisão de ciências aplicadas da empresa. É ele quem fornece ao Homem-Morcego todo o arsenal tecnológico, da armadura e o cinto de utilidades ao batmóvel, inicialmente construído para ser um veiculo de guerra batizado de The Tumbler. Ao lhe apresentar as fantásticas características do veículo, Wayne vem
com a gracinha: “Tem na cor preta?”Já que se falou do batmóvel, ele foi recauchutado para os novos tempos. Diferente do clichê de “carro de playboy”, o veículo agora parece um tanque com capota cubista, cheia de arestas e ângulos. E a coisa voa: foram criadas duas versões do veículo para sofrer propulsão. Mas a versão normal, de 2,5 toneladas, consegue realmente saltar de 1,8 m e atingir 18 m. Em uma seqüência de perseguição mirabolante, Batman escapa da polícia até o topo de um edifício. E, quando tudo indica que seria pego, voa com o carro de um prédio a outro, fazendo telhas pularem sob o impacto. Efeito, claro. Para os amantes de máquinas envenenadas, o visual do carro foi inspirado no sofisticado Lamborghini e no robusto Hummer. A ordem que Nolan deu ao desenhista de produção foi uma só: realismo. Uma senha que presidiu todas as etapas da filmagem e acabou dando certo.

Trauma – Logo no início, por exemplo, vemos o menino Bruce brincando com a amiguinha Rachel. Ele cai num poço – na verdade, um dos acessos da futura batcaverna que existe sob a mansão dos Wayne – e é atacado por um bando de morcegos. A experiência do medo, condensada nessa cena traumática de fundo freudiano, vai marcar o garoto para o resto da vida. Ao assistir com os pais à ópera Mefistófeles, de Arrigo Boito, ele pede para abandonar o teatro no momento em que aparecem alguns morcegões. Na saída, seus pais são assassinados, numa passagem dramática, muito bem realizada. Dá-se um salto e vê-se Wayne já adulto numa cadeia nos confins do Butão. Como aqueles desgarrados ingleses do século XIX, ele busca a expiação da culpa vagando pelo mundo. Quer estudar a mente criminosa. Recebe então a visita de Henri Ducard (Neesom) , outro ser exilado, pertencente à seita chamada Liga das Sombras, que só admite possuidores de uma flor azul – símbolo da sabedoria entre os alquimistas e poetas românticos. Admitido no grupo, Wayne aprende tudo sobre controle, disciplina e superação
do medo através da afirmação da vontade.

Já se vai mais de meia hora de filme e o espectador se pergunta, por que cargas-d’água o nosso futuro herói está passando por essa experiência. Mas, para os fãs da história em quadrinhos, a lengalenga tem tudo a ver. E envolve. Passados sete anos, Wayne volta a Gotham City e encontra a cidade naquele estado que todos os outros títulos já mostraram. São dois os vilões. O primeiro deles ainda é comum – o mafioso Carmine Falcone (Tom Wilkinson). Mas o que atua nos bastidores é tão assustador e diabólico quanto Coringa, Pingüim, Charada e cia. Trata-se de Espantalho (Cillian Murphy), na verdade o psiquiatra Jonathan Crane, aliado de Falcone, que usa a artimanha de levar para o asilo os mafiosos condenados, libertando-os assim da cadeia. Mas, ao soltar no ambiente a toxina do medo e colocar sua máscara de saco de linhagem, as pessoas-alvo realmente enlouquecem, passando a ter visões horrorosas. É a descoberta da atuação da dupla que leva Wayne a optar pela vida de super-herói. O restante enquadra o Batman que todos já conhecem, só que mais convincente. E, novidade, apaixonado pela Rachel da infância, vivida por Katie Holmes, a atual de Tom Cruise. Além de defender Gotham da ameaça terrorista (referência ao Eixo do Mal), Batman tem também de salvar Rachel, uma promotora que resolveu se meter com gente do nível de Falcone e Crane. Pode existir coisa mais romântica?