A Capela Sistina, no Vaticano, com seu maravilhoso teto retratando passagens da Bíblia é um daqueles locais onde se fica de joelhos. Não necessariamente para rezar, mas para apreciar a que ponto pode chegar a criação artística – no caso, de Michelangelo. Não muito longe de Roma, em Arezzo, ao norte da Itália, outra igreja é ponto de romaria para os amantes da pintura. Trata- se da Basílica de San Francesco, em cujas paredes e abóbada se encontra um conjunto de afrescos não menos majestoso, chamado A lenda da cruz. Quem o criou foi o pintor italiano Piero della Francesca, mestre renascentista como Michelangelo, que viveu um pouco antes, no chamado Quattrocento, entre 1420 e 1492.

Toda a seqüência desse afresco, que narra uma lenda medieval sobre a origem da cruz em que morreria Jesus Cristo, está reproduzida no extenso caderno de ilustrações (156 imagens) do livro Piero della Francesca (Cosac Naify, 464 págs., R$ 99), escrito pelo crítico italiano Roberto Longhi (1890- 1970). Esse estudo é um clássico da história da arte e chega pela primeira vez às livrarias brasileiras. Publicado em 1927, foi responsável por uma reavaliação da obra de Piero della Francesca, cujo uso da cor o credencia como pai dos artistas modernos.

É possível enxergar semelhanças entre as batalhas retratadas por Piero nesse afresco (Vitória de Constantino sobre Maxêncio e Derrota de Cosroés) e as cenas de guerra de um Diego Velázquez, pintor espanhol nascido um século depois, autor da tela A rendição de Breda. Ambas mostram a mesma progressão de lanças apontadas para o céu em contraposição ao desenho curvo das bandeiras com as ordens da cavalaria. Mas a paternidade de que fala Longhi em seu livro atravessa um amplo arco de tempo. A influência de Piero chegou, por exemplo, ao luminoso pontilhismo francês – é sabida a admiração de Georges Seurat, artista do final do século XIX, pela disposição matemática e quase sem movimento das figuras pintadas pelo italiano. Essa forma de fracionar o espaço vai aparecer mais recentemente nas telas do inglês David Hockney. Longhi, contudo, prefere se deter na relação entre o estilo de Piero e aquele do pré-cubista francês Paul Cézanne. Segundo o crítico, já existiria no renascentista a mesma tentativa de “tratar a natureza por meio do cilindro, da esfera, do cone”, o conhecido lema da pintura de Cézanne.
RETRATO Battista Sforza e Federico de Montefeltro, da corte de Urbino

Trata-se de uma forma de ver o mundo que não surpreende. Nascido em Borgo San Sepolcro, Piero era matemático e escreveu um tratado sobre a perspectiva segundo o qual as mesmas regras geométricas podem ser aplicadas tanto a uma cabeça humana quanto a um cubo ou a um capitel coríntio. Essa busca da forma pura é flagrante nos retratos dos casal de nobres Federico de Montefeltro e Battista Sforza, duas das telas mais admiradas da Galeria Degli Uffizi, em Florença. O duque e sua mulher, mostrados de perfil e diante de uma paisagem, viviam em Urbino, uma das comunas em que Piero atuou depois do aprendizado na fervilhante cidade dos Médici. Esse mesmo duque aparece em outra obra-prima do artista, o Retábulo de Brera (1472-1477), um dos motivos para se visitar a Pinacoteca de Brera, em Milão.

BATALHA Derrota de Cosroés (à esq.), do afresco A lenda da cruz, obra reproduzida no livro de Roberto Longhi (acima)

Ele aparece vestido de armadura e ajoelhado diante de Nossa Senhora, o menino Jesus e dez santos. Quando retratou o nobre como cavaleiro cruzado, Piero já era um homem rico, cheio de encomendas. Em um documento analisado por Longhi, ele é listado como um dos cidadãos em atraso com a taxa comunal. Ninguém é perfeito.