REAÇÃO Militantes ambientalistas invadem a Aneel para protestar contra a licitação

Bem-vindos ao capitalismo. Pelo menos no segmento das obras públicas o Brasil entrou na era da livre concorrência na tarde da segunda-feira 10, quando um consórcio de cinco empresas, lideradas pela empreiteira Norberto Odebrecht, ganhou a licitação para a construção e exploração da usina hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, Rondônia, a maior obra em execução no planeta. O consórcio vencedor apresentou um lance com deságio de 35% em relação ao preço-base calculado pelo governo. Queriam ganhar a obra a qualquer preço – e, nesse caso, o preço foi oferecer um polpudo desconto ao consumidor final, de R$ 20 bilhões ao longo dos 30 anos de concessão. Visto sob a ótica contrária, as empresas vencedoras abriram mão de lucrar cerca de R$ 650 milhões por ano para ficar com o negócio. Houve mais desconto. No início do processo, o governo previu que a obra custaria R$ 13,5 bilhões. Refeitos projetos e cálculos, o orçamento acabou caindo para R$ 8,6 bilhões. Trata-se de uma diferença de quase R$ 5 bilhões. “Foi surpreendente, eu era o mais otimista, mas não esperava que o valor caísse tanto”, festejou o ministro das Minas e Energia, Nelson Hubner. Apenas algumas centenas de militantes de ONGs ambientalistas e de movimentos sociais protestaram contra o leilão invadindo a sede da Aneel em Brasília. Foram retirados a força pela PM.

O que teria acontecido nos bastidores para que o capital entrasse num negócio aceitando R$ 25 bilhões a menos de lucro? Houve uma conjunção de fatores. Autoridades forçaram a concorrência e as empreiteiras entraram em guerra fratricida junto ao mercado, ao governo e aos tribunais. Mas o fator essencial, a respeito do qual poucos sabem, foi o fantasma do desembarque da armada espanhola em nossas terras. Em setembro último, o presidente Lula foi à Dinamarca. Na volta, desceu por algumas horas em Madri para conversar com o rei Juan Carlos I e com o primeiroministro José Luis Rodríguez Zapatero. Em paralelo, a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, manteve um encontro com um grupo de empresários. Lula e Dilma foram informados de que há dez grandes empresas da Espanha querendo conquistar o mercado de infra-estrutura da América Latina. No Brasil, querem investir na construção de rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas – e depois ficar com as concessões desses negócios. Até aí, tudo bem.

Mas, naqueles encontros, Lula e Dilma foram informados, explicitamente, de que as empreiteiras espanholas, como a Endesa, Ampla e OHL, iriam disputar as concorrências das obras do PAC. Seria a primeira vez desde JK que empreiteiras estrangeiras entrariam em nossas terras. E iriam tentar baixar os preços das obras. Dilma adorou. Lula ficou em dúvida. Dilma marcou nova reunião com os espanhóis em Brasília. Nos dias subseqüentes, Lula e Dilma sofreram uma pressão pesada das nossas empreiteiras. Emílio Odebrecht, Fernando Botelho (da Camargo Corrêa) e Sérgio Andrade (da Andrade Gutierrez) os procuraram para reclamar. Chegaram a participar da reunião fechada das 9 horas com Lula e os ministros da casa. Paulo Godoy, presidente da Abdib, entidade que representa as empreiteiras, foi acionado para fazer lobby no Congresso e no governo.

Os empreiteiros lembraram Lula de que eles vêm tentando desde 1990 construir estradas e ferrovias na Espanha. “Mas eles se fecharam, criaram barreiras veladas e não nos deram nenhuma chance”, disse o presidente de uma das empreiteiras. Pior. “Agora que toda a infraestrutura de lá está pronta, estão subsidiando suas empresas para tomar o mercado da América Latina”, argumentou. “Não teremos nenhuma chance contra eles em nossa própria terra”, disse a Lula o presidente de uma empreiteira. “O que vale para lá, vale para cá”, decidiu Lula. O presidente então mandou o governo ajudar as empreiteiras brasileiras, discretamente, e barrar, com discrição ainda maior, o desembarque dos espanhóis. Essas conversas ocorreram ao longo de outubro e novembro. Os fundos de pensões das estatais e o BNDES então anunciaram que financiariam o consórcio vencedor da licitação do rio Madeira. Isso deixou as empreiteiras brasileiras mais seguras. Chegou também a elas a informação de que o BNDES faria corpo mole caso algum espanhol vencesse.

Os últimos dois meses foram de intensa movimentação no mercado. Odebrecht e Camargo Corrêa, desde junho em guerra aberta, provocavam mudanças frenéticas na formação dos consórcios. Chegaram a se formar seis diferentes grupos, que se desfizeram sem lógica aparente. Apenas três chegaram à reta final. A Odebrecht apareceu com o banco espanhol Santander. A Camargo incorporou no consórcio a espanhola Endesa, uma das maiores do mundo no segmento de linhas de transmissão elétrica. Por fim, apareceu um consórcio liderado pela empreiteira belga Suez, que na Europa só trabalha em parceria com os espanhóis. Levaria a concessão quem se comprometesse a vender ao consumidor a futura energia pelo menor valor. O preço de partida era de R$ 122 por mega-watt/hora (MW/H). Como havia espanhóis nos três consórcios, os consultores avaliaram que os lances ficariam na faixa de R$ 100 por MW/H. A Suez fez o lance de R$ 98. A Camargo ofereceu R$ 94, quase em seu limite de lucro. A Odebrecht estava com tanta ânsia de ganhar que ofereceu R$ 79,9 por MW/H.

“Essa grande diferença de preços mostra que desta vez não teve acerto”, observa o deputado José Carlos Aleluia, do DEM, maior especialista em energia do Congresso. “O cartel não funcionou”. Mas como o consórcio vitorioso vai conseguir oferecer energia a preço tão baixo? As regras obrigam o consórcio a vender 70% da energia ao preço tabelado, R$ 79,9 o MW/H. Mas permite que venda 30% no mercado livre. A Odebrecht combinou com três grandes consumidores, Vale, Alcoa e Votorantim, vender seus 30% a R$ 170 o MW/H. Isso permitiu mudar a planilha de custos. Como se prevê um novo apagão a partir de 2011, é um bom negócio para todos. “O pulo-do-gato foi outro”, diz o presidente do consórcio vencedor, Irineu Meirelles. Ele conseguiu com os fornecedores de equipamentos garantir que a usina entre em operação em maio de 2012, sete meses antes do previsto. “Isso vai gerar sete meses de receitas extras, permitindo baixar a tarifa”, explica