PRESENTE Hugo (na foto acima) comprou a bola para presentear a si mesmo. O brinquedo ainda está na cama

A família Cavalcanti mora em uma casa espaçosa, disposta em uma ribanceira do condomínio Ubá Floresta, em Itaipu, bairro de classe média de Niterói. Tem quatro andares, mas só dois quartos. Escadas com degraus de madeira suspensos no ar ligam os ambientes, da garagem à piscina. Era uma casa muito engraçada. Ali vivia o Príncipe Tuntuntum, apelido criado pelo analista de sistemas José Augusto Cavalcanti, 47 anos, e sua mulher, a webdesigner Sandra Ronca, 45, para imitar a reação da madeira aos passos acelerados do filho caçula. Só havia silêncio quando ele dormia, estava na escola ou saía para jogar bola ou subir em árvores. Aos 12 anos, Hugo Ronca Cavalcanti não andava. Só corria. Botafoguense fanático, o pequeno era um perna-de-pau. Em campo, gritava e gesticulava, mas nada de dominar a bola. Foi assim até o sábado 1º, quando saiu de Niterói com os pais para comemorar o aniversário de um amigo no Clube Federal, Leblon, zona sul do Rio. Eram 18h quando deu um drible espetacular e quase marcou um golaço. “Eu o aplaudi, elogiei e abracei. Ele ficou eufórico. Foi a última vez que falei com ele”, conta José Augusto. Minutos depois, o pai de Hugo ouviu gritos e correu em direção ao filho. O príncipe estava caído perto da trave, inconsciente, com a camiseta ensopada de sangue. “Minha maior aflição é quando fecho os olhos, no travesseiro, e ele está nos meus braços, sangrando”, recorda o pai.

FOTOS: ALEXANDRE SANT’ANNA

CUMPLICIDADE Um dos hobbies do menino era fazer desenhos do pai, José Augusto. Depois, ele os espalhava pela casa. José assistia ao filho jogar futebol quando o garoto foi baleado

Poderia ter sido mais uma estripulia de Hugo, que quebrou o fêmur aos dois anos de idade – até hoje ninguém sabe como – e em março deste ano quebrou o braço jogando futebol em seu aniversário. Nem os médicos do Hospital Miguel Couto perceberam, no primeiro momento, que Hugo era mais uma vítima de bala perdida, a desgraça que virou rotina carioca. O projétil, de nove milímetros, só foi localizado na tomografia. Estava na cabeça. Hugo ficou uma semana em coma e morreu no sábado seguinte. Com duas semanas de investigação, a Polícia não sabe se a bala partiu da favela Chácara do Céu ou de algum prédio próximo. Para os pais, não faz diferença. “Nunca penso na mão que apertou o gatilho. A bala caiu do céu”, diz Sandra, buscando consolo em qualquer brecha: “Pelo menos ele não sofreu.”

CAMPEÃO O garoto (em primeiro lugar no pódio) era do tipo que não parava quieto. No futebol não era um craque, mas no judô ganhou várias medalhas

De janeiro de 2006 a agosto de 2007, o Instituto de Segurança Pública registrou 394 vítimas de balas perdidas no Rio, com 31 mortos, a maioria em bairros pobres da cidade. O que não existe é estatística para medir a desolação de quem enfrenta a vida depois da perda. A revolta e a comoção com o caso de Hugo inundaram o Orkut e produziram cenas que, assim como sua morte, desafiam a ordem natural das coisas, como a de centenas de crianças às lágrimas consolando-se umas às outras no cemitério Parque da Colina, em Niterói. A solidariedade é a razão que José Augusto e Sandra encontram para explicar a aparente serenidade com que enfrentam os primeiros dias sem o caçula. Não param de chegar mensagens de católicos, evangélicos, espíritas, budistas, ateus e crianças, com declarações de amor ou amizade eterna. A casa vive cheia. “A minha força vem da fé e do amor. Acho que foi se formando com um pouco de cada um que esteve nessa corrente”, diz Sandra.

E quando tudo isso acabar? “Meu medo é a vida voltar ao normal e a ficha cair. Hugo era muito agregador e a casa vivia lotada”, diz Sandra. A mãe, o pai, o irmão, Filippo, 16 anos, e Zilma, 68 anos, avó paterna dos meninos, abriram para ISTOÉ a casa da família. Durante quatro horas, reconstituíram sem chorar a precoce biografia do Príncipe Tuntuntum. Seus rastros estão por toda parte. Os mais recentes, na árvore de Natal. “Em outubro ele começou a atazanar para montar a árvore e o presépio e embrulhar presentes”, lembra Sandra. Era teimoso e sedutor, segundo a mãe. Quando argumentava que era cedo para pensar em Natal, ela enfrentava a cantilena: “Mas, mãe … mas, mãe…”

“A vida de anjo dele foi muito curta, mas o que me conforta é que ele viveu com intensidade”, diz a avó Zilma. “Não há nada pior do que passar a vida sem marcar presença”, diz. Ela abaixa a cabeça para engolir o choro na cadeira de balanço e volta a desfiar as lágrimas: “Eu viajava com ele nas férias e vinha aqui a cada 15 dias para recarregar as energias. Não sei como vai ser agora”, fala. José Augusto e Sandra também não sabem como seguir adiante. “Só penso nos próximos cinco minutos. No começo, eu abria os olhos devagar e demorava até pôr os dois pés no chão. É um passinho de cada vez”, diz Sandra.

ALEXANDRE SAT’ANNA/AG. ISTOÉ

DOR O garoto adorava o Natal. Desde outubro ele preparava a festa deste ano.

A mãe, que fez aniversário dois dias após a morte de Hugo, exibe um rolo de papel de 25 metros preparado pelos amigos do filho com mensagens de apoio e parabéns. Na mesa de centro estão origamis feitos pela turma na casa de um dos melhores amigos de Hugo, descendente de japoneses, seguindo a crença de que ajudariam na cura. Hugo adorava desenhar e um de seus hobbies era retratar o pai, espalhando os desenhos pela casa. Outro era fazer rimas para Sandra. “Mamãe você me ensinou/me fez feliz e me ajudou/fiquei feliz quando te vi/fiquei alegre e sorri.”

AJB

Centenas de amigos tentavam se consolar durante o enterro

De todos os vácuos que a morte abriu na casa, Sandra já sabe qual será o maior. “Ele é um sedutor. Me chama de princesa e abraça com força. O pior é ficar sem o abraço”, diz a mãe, ainda usando o verbo no presente. José Augusto e Filippo lembram manias menos carinhosas do caçula. Uma delas era abrir a palma da mão diante do rosto de alguém, pedindo que cheirasse sua mão. “Quando a gente ia cheirar, ele dava um tapão na testa. Me derrubou da cadeira uma vez”, conta o pai.

Quando esculpiu a tristeza na canção Pedaço de mim, Chico Buarque disse que a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. As roupas de Hugo ainda entulham o armário azul-marinho no pequeno cômodo que dividia com o irmão. Filippo era o encarregado de acordá-lo às 6h30 para ir ao Colégio Salesiano, onde cursava a sexta série. “Ele se vestia e dormia de novo. Tinha de chacoalhá-lo.” Na parte de baixo do beliche, onde Hugo dormia, está a bola que ele juntou dinheiro para comprar, embrulhar e deixar na árvore de Natal para si mesmo.

Filippo está dormindo no chão do quarto dos pais. Ele ensaia um sorriso dilacerante ao mostrar os pertences do irmão na saleta onde estudavam e jogavam Tibia ou Fifa no computador. Ali estão os livros de Harry Potter, os álbuns de figurinhas, os manuais da Turma da Mônica e títulos trash como O Capitão Cueca e a sina ridícula do povo do penico roxo e Capitão Cueca e a fúria da facinorosa mulher tentacular. Mostra também duas cartas da coleção de Pokémon, com os personagens Zaptos e Mewtwo. Eram valiosas e hoje ardem em suas mãos. “Só faltavam essas para a coleção do Hugo e ele me fez várias propostas de troca. Eu deveria ter dado para ele”, diz. O pai lamenta não tê-lo levado para ver o Botafogo no estádio Engenhão. “Deixei para o próximo campeonato.”

Desde março de 2004, quando José Augusto perdeu o emprego e começou a trabalhar em casa com a mulher, a família aperta o cinto. Hugo ficou sem a mesada de R$ 40, que gastava comprando Kinder Ovo, menos pelo chocolate e mais pelo gosto das surpresas que vêm dentro do produto. Mesmo em dificuldade, José Augusto manteve o churrasco que reunia os quatro na piscina às quartas e sextas-feiras à noite. “Meu pai sempre me mandava pegar alguma coisa lá em cima e eu fazia o Hugo ir. Agora, vai sobrar para mim”, brinca Filippo, agora sem tentar sorrir. Não há churrasco programado.

A casa tem um cachorro, o boxer Bonzo, cujo nome José Augusto trocava de propósito com o de Hugo. “Chamo o Hugo de Bonzo e o Bonzo de Hugo. Eles são iguais, estabanados, gulosos e brincalhões.” Fala das graças do caçula enquanto Sandra prepara, num velho fogão, macarrão para Filippo. Outro arrependimento, conta José Augusto, bateu ao olhar o filho inerte no hospital. “Quando ele queria algo que eu não concordava ou não tinha paciência para ouvir, ele me cutucava sem parar dizendo ‘mas pai… mas, pai…’ Eu não dava atenção. No hospital, jurei que, se ele não morresse, eu faria diferente.” É o único momento em que o nó da garganta derruba José Augusto e faz a voz sair aos solavancos. Ele pede desculpas e Sandra retira da mesa o prato usado por Filippo. É meia-noite e a família se prepara para dormir. Chove muito em Niterói e o silêncio enche a casa. Não há mais qualquer graça, só dor.