19/12/2007 - 10:00
Há 35 anos, quando se juntou aos conterrâneos de Minas Gerais no disco Clube da esquina, Milton Nascimento tornou-se um artista universal. A potência da voz, a excelência dos arranjos e a poesia das letras criadas pela turma de Belo Horizonte nos anos 70 casou a África com a mineiridade e influenciou diversas gerações mundo afora. Este mês serão relançados os históricos álbuns Clube da esquina 1 e 2, remixados e remasterizados por João Marcelo Bôscoli. Com 65 anos, Milton nunca teve filho – e não gosta de tocar no assunto –, mas garante conhecer pelo nome seus 114 afilhados. Avesso à exposição da vida pessoal, o artista recebeu ISTOÉ em sua casa no bairro carioca do Itanhangá, entre miniaturas de locomotivas e centenas de fotos de crianças, duas de suas grandes paixões.
Milton Nascimento – Às duas coisas. O pessoal não estava acostumado com aquele tipo de música. Tanto que foi difícil no começo. Depois do primeiro Clube da esquina, aconteceu algo que sinalizou tudo. O Wayne Shorter tinha o grupo de jazz Weather Report. Vieram tocar no Theatro Municipal e, para ver meu show, eles encurtaram o deles. Corriam para me ver. No primeiro dia, quase morri de susto. Depois fui me acostumando. No último dia, o Wayne me chamou para gravar com ele nos Estados Unidos e perguntou se eu queria levar alguém. Levei Wagner Tiso e Robertinho Silva para Los Angeles, ficamos na casa dele e gravamos Native dancer, que abriu a porta para todo tipo de público. Eu não entendia nada. Era de Três Pontas e de repente estava em Nova York no meio da neve.
A voz também, mas era muito mais, um negócio diferente. Nunca tinham visto alguém tocar violão daquele jeito. O Maurice White, líder do Earth Wind & Fire, disse que o grupo dele passou a existir por causa do jeito que eu toquei no disco com o Wayne Shorter. Naquela época havia muita rixa entre os estilos musicais. O pessoal do pop não gostava do pessoal do rock, que não gostava do samba e por aí vai. Do nosso disco todo mundo gostou e começou a me chamar para gravar vários estilos. Estou em todas que me chamam, desde que eu goste.
Não tenho nenhuma exigência de música ligada a política. Tudo que faço é baseado no ser humano, geralmente a partir dos olhos das crianças. Eu fico pensando: pôxa, quem está acabando com a terra nunca olhou o brilho no olho de uma criança. Se olhar bem, não vai ter coragem de fazer nada para apagar esse brilho. Criança é a coisa mais importante do mundo.
É uma história na qual eu não gosto de tocar. Tenho 114 afilhados. Sei o nome de todos. As crianças gostam de mim e me chamam. Às vezes batizo três de uma mesma família. Segundo o candomblé, sou filho de Oxalá, mas sou cercado de erês, espíritos de crianças.
Não sei. Por enquanto não.
Ô, meu Deus, estávamos falando de outra coisa.
Olha, tem lugar para todo mundo. Dizem que a música brasileira está uma porcaria, que não aparece nada novo. Está errada essa idéia. A MPB está boa, sim. Só que não é fácil aparecer.
Ué, eu estou aí, vê quem quer. Já sofri muito com mentira da imprensa. Quando meu remédio para diabete me deu anorexia, pegaram pesado demais. Foram à minha família, aos meus amigos, tudo. Divulgamos um atestado de que eu não tinha doença infecto-contagiosa, mas o negócio foi tão mau que escolheram médicos amigos dos meus médicos para falarem que meus médicos estavam mentindo, que diabete não provoca isso.
Ótima, graças a Deus.
Decidi que não seria preso a religião ou a partido porque quero conversar com todos. De vez em quando vou ao espiritismo, ao candomblé. Ao mesmo tempo, fiz Missa dos quilombos, para os negros em geral, uma idéia do dom Hélder Câmara. Falávamos coisas da África para quilombos dentro da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, com padres.
É uma homenagem a mim. Descobri que meu boné estava ficando mais famoso do que eu. Pensei: esse boné está muito metido. Aí, fiz as tranças
Está em meu corpo inteiro. Saiu meu DNA mostrando que 99,4% é africano, 0,3% índio e 0,3% branco.
Fui perseguido. Não fico tocando nisso porque chega de sofrer. Fui preso sob a alegação de que fazia barulho no prédio onde morava, na Lagoa – apesar de eu estar na Venezuela no dia da denúncia. Aí o delegado mudou a acusação, dizendo que eu escondia presos. Só não fiquei preso porque uma pessoa lá dentro me conhecia desde criança e falou: “Nem pense em tocar nesse cara.” Aí me soltaram.
Não fui para o exílio, mas todas as portas se fecharam para mim. Pensam que só sofri censura depois do Milagre dos peixes, mas foi algo constante. A letra da música Ao que vai nascer, do Fernando Brant, foi proibida. Uma vez tive de ir ao Dops porque dei uma entrevista falando sobre racismo no Brasil. Tinha encontrado a filha do Paulo Moura na rua, chorando por ter sido barrada em um clube de Copacabana por ser negra. Ainda há muito racismo no Brasil.
Não fui para o exílio, mas todas as portas se fecharam para mim. Pensam que só sofri censura depois do Milagre dos peixes, mas foi algo constante. A letra da música Ao que vai nascer, do Fernando Brant, foi proibida. Uma vez tive de ir ao Dops porque dei uma entrevista falando sobre racismo no Brasil. Tinha encontrado a filha do Paulo Moura na rua, chorando por ter sido barrada em um clube de Copacabana por ser negra. Ainda há muito racismo no Brasil.
Seria melhor ter cotas para as pessoas necessitadas. Para os negros, vira racismo. Tinha de ser para quem não tem condições de estudar.
Para mim ele subiu no pedestal quando chamou o Gilberto Gil, que é honesto até onde uma pessoa pode ser. Agora, tem muita coisa suspeita acontecendo. São coisas que acontecem no mundo inteiro, mas não sei até onde vai isso. Cada dia acontece algo mais terrível. Eu votei em Lula.
Por enquanto, acho que não. Como pessoa, eu votaria nele, mas ainda não consegui entender o que está acontecendo com o Brasil.
Isso me lembra mais o retrato da época em que havia ditadura no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile. Acho que está mais para o autoritarismo do que para um movimento de esquerda no qual eu possa acreditar.
Belo Horizonte, na época, era a melhor cidade do Brasil, com muitos músicos, cinemas, bibliotecas, teatros. A gente circulava nesse mundo. Eu era tipo adotado pela família dos Borges. Um dia fui na casa deles e estava vazia. Dei uma volta e, quando estou saindo, vem chegando o Lô Borges. Eu disse: “Lô, vamos ali no boteco que eu vou tomar uma caipirinha e você, um guaraná.” Ele tinha 16 anos. Eu pedi a caipirinha e ele pediu outra. Eu olhei com cara de desaprovação, mas ele nem aí. Começamos a conversar e ele disse: “Milton, gosto muito de você, das suas músicas, mas tenho uma tristeza. É que vocês não gostam de mim. Vocês nunca me chamam para sair com vocês à noite.”
Aí eu falei para ele: “Ô, Lô, nesse momento, quando você pediu a caipirinha, é que notei que você não é mais criança. Então agora a coisa muda.” Ele me disse que tinha umas músicas incompletas e queria que eu ouvisse. Fomos para a casa dele e começamos a tocar. Esquecemos do tempo, fomos tocando, tocando. Eu tenho uma mania. Quando o negócio está tocando muito aqui (aponta para o coração), fecho o olho, abaixo a cabeça e vou tocando. Quando eu abri os olhos, estava o Marcinho Borges ao lado com um bloco, anotando a caneta, e a mãe deles encostada na porta da sala, chorando. Fizemos o primeiro Clube da esquina.
Desde pequeno meu pai e eu vivíamos com um telescópio olhando o céu. Morávamos em Três Pontas (MG). Me deu na cabeça que eu seria astrônomo e fui para Belo Horizonte com essa vontade, mas lá não tinha essa faculdade. Aí fui com o Márcio Borges fazer matrícula para o curso de economia. Eu estava saindo da faculdade com ele e perguntei: “Escuta, Marcinho, você tem um fósforo?” Ele tinha. “Então acende aí.” Ele acendeu, eu botei os papéis todos da matrícula e foi aquele fogão. Eu estava decidindo que faria só música. Éramos cheios de história. Mineiro você sabe como é que é, né? Ficamos muito alegres, fomos para um boteco e começamos a festejar. O cara do bar fechou, saiu e nós ficamos lá dentro até o dia seguinte, com sol quente.
Não. É o contrário de importante. Como qualquer turma de jovens mineiros, nós saíamos, íamos aos bares, mas a bebida não movia as coisas, não. Para gravar e fazer música, não bebíamos.
Há uns 30 anos, na ditadura. Era na bebida que eu afogava as mágoas contra a repressão. Mas decidi que a ditadura não merecia que eu me matasse.
(risos) Não. Eu não era dos que mais fumavam.
Foi quando morei em São Paulo. Tenho amor por São Paulo, mas, depois do que passei lá, nada me derruba. Eu morava em uma pensão no centro e cheguei a passar uma semana sem comer. Foi quando peguei um ônibus, quase caindo de inanição, e fui para Três Pontas. Quando meu pai abriu a porta, levou um susto. Fui para a cama e me trataram. Isso era em 1966.
Acabou. Esse negócio encerrou ali. Tudo está dito, tocado, falado e vivido. O tempo foi passando e cada vez vinha mais cobrança do mundo inteiro pelo terceiro Clube da esquina. Eu sempre digo que o Clube da esquina são dois. Não vai ter outro porque aquilo que aconteceu ali não acontece mais.