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Está sendo lançada no Brasil a trilogia “Cenas da Vida na Província” (Companhia das Letras) do autor sul-africano John Maxwell Coetzee, Prêmio Nobel de literatura de 2003. Depois dos romances “Infância” e “Juventude”, chega agora às livrarias “Verão”, mais uma história em que o escritor utiliza artifícios narrativos para compor um enredo multifacetado e, nesse caso, uma trama de ficção que tenta se passar por um relato biográfico. O livro flagra o autor nos anos 1970, quando Coetzee, aos 30 anos de idade, retornava dos EUA para a África do Sul no auge do regime do apartheid. A história nos é contada por um pesquisador inglês. Entre outros personagens, todos fictícios, ele entrevista uma suposta vizinha do autor sul-africano com quem Coetzee teria mantido um romance.

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+5 livros de J. M. Coetzee

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DESONRA
Esse importante romance do autor se passa no período pós-apartheid e virou filme estrelado por John Malkovich (foto)

A VIDA DOS ANIMAIS
Primeiro livro protagonizado pela escritora Elizabeth Costello, personagem recorrente em seus romances

ELIZABETH COSTELLO
A romancista australiana profere palestras com discussões literárias provocativas ao viajar aos EUA para receber um prêmio

O DIÁRIO DE UM ANO RUIM
Três histórias paralelas fazem uma violenta crítica ao governo de George W. Bush

À ESPERA DOS BÁRBAROS
Com métodos truculentos, coronel chega a um vilarejo para investigar possível rebelião dos moradores

 

TRECHO DE "VERÃO"

22 de agosto de 1972

No Sunday Times de ontem, uma reportagem de Francistown, em Botswana. Em algum momento da semana passada, no meio da noite, um carro, modelo americano, branco, foi até uma casa numa área residencial. Homens com gorros balaclava saltaram, arrombaram aos chutes a porta de entrada e começaram a atirar. Quando cansaram de atirar, tocaram fogo à casa e foram embora. Das brasas, os vizinhos retiraram sete corpos calcinados: dois homens, três mulheres, duas crianças.
Os assassinos pareciam ser negros, mas um dos vizinhos ouviu que falavam africânder entre eles e estava convencido de que eram brancos pintados de preto. Os mortos eram sul-africanos, refugiados que tinham mudado para a casa poucas semanas antes. Consultado, o ministro das Relações Exteriores sul-africano, por intermédio de um porta-voz, qualificou a reportagem de
“sem comprovação”. Serão realizadas investigações, diz ele, para determinar se os mortos eram de fato cidadãos sul-africanos. Quanto aos militares, uma fonte não identificada nega que a Força de Defesa sul-africana tenha qualquer coisa a ver com o assunto. Os assassinatos são provavelmente uma questão interna do Congresso Nacional Africano, sugere ele, que revela as “tensões existentes” entre facções.
Assim vão se sucedendo, semana após semana, essas histórias de países limítrofes, assassinatos seguidos de débeis negativas. Ele lê as reportagens e sente-se conspurcado. Então foi para isso que voltou? Porém onde no mundo alguém pode se esconder sem se sentir conspurcado? Será que se sentiria mais limpo nas neves da Suécia, lendo a distância sobre seu povo e suas últimas travessuras?
Como escapar da sujeira: não uma questão nova. Uma velha questão corrosiva que não larga, que deixa sua feia ferida supurando. Remorso moral.
“Pelo visto a Força de Defesa está de volta aos velhos hábitos”, ele observa a seu pai. “Em Botswana desta vez.” Mas o pai está desconfiado demais para morder a isca. Quando pega o jornal, toma o cuidado de ir direto para as páginas de esporte e pular a política; a política e os assassinatos.
Seu pai sente apenas desdém pelo continente ao norte. “Bufões” é a palavra que usa para desqualificar os líderes de Estados africanos: tiranos miúdos que mal conseguem soletrar o próprio nome, levados de um banquete a outro em seus Rolls-Royce, usando uniformes de forças imaginárias enfeitados com medalhas que outorgaram a si mesmos. África: um lugar de massas esfaimadas presididas por bufões homicidas.
“Invadiram uma casa em Francistown e mataram todo mundo”, ele insiste mesmo assim. “Executaram. Inclusive as crianças. Olhe. Leia a reportagem. Está na primeira página.”
O pai dá de ombros. Não consegue encontrar palavras que abarquem sua repulsa por matadores que executam mulheres e crianças indefesas, de um lado, e, de outro, por terroristas que fazem guerra a partir de refúgios fora das fronteiras. Ele resolve o problema mergulhando nos resultados do críquete. Como reação a um dilema moral, a atitude do pai é frágil; mas a resposta dele próprio (ataques de raiva e desespero) será melhor?
Houve tempo em que pensava que os homens que sonharam a versão sul-africana de ordem pública, que deram origem ao vasto sistema de reservas de trabalho, passaportes internos e cidades-satélite, tinham baseado sua visão em uma leitura tragicamente equivocada da história. Tinham interpretado mal a história porque, nascidos em fazendas ou em pequenas cidades no interior, e isolados dentro de uma língua que não era falada em nenhum outro lugar do mundo, eles não sabiam avaliar a escala de forças que desde 1945 vinha arrasando o velho mundo colonial.
Mas era errado dizer que tinham interpretado mal a história. Porque eles não faziam nenhuma leitura da história. Ao contrário, viravam as costas para ela, descartando a história como uma massa de enganos concatenados por estrangeiros que sentiam desprezo pelos africânderes e que fechariam os olhos se eles fossem massacrados pelos negros, até a última mulher e criança.
Sozinhos e sem amigos na ponta remota de um continente hostil, eles erigiram seu Estado-fortaleza e se retiraram para trás de suas muralhas: ali manteriam a chama da civilização cristã ocidental acesa até finalmente o mundo recuperar a razão.
Era assim que falavam, mais ou menos, os homens que lideravam o Partido Nacional e o Estado de segurança, e durante longo tempo ele achou que falavam com sinceridade. Mas não mais. Essa conversa de salvar a civilização, ele tende a pensar agora, nunca foi nada além de um blefe. Por trás de uma cortina de fumaça de patriotismo, eles estão neste mesmo instante calculando por quanto tempo conseguirão manter a coisa em movimento (as minas, as fábricas) antes de precisar fazer as malas, retalhar qualquer documento comprometedor e voar para Zurique,
Mônaco ou San Diego, onde, sob a capa de companhias de holding com nomes como Algro Trading ou Handfast Securities, eles compraram anos atrás mansões e apartamentos como seguro para o dia do juízo (“dies irae, dies illa”).
Segundo esse seu novo, revisado modo de pensar, os homens que mandaram o esquadrão de chacina a Francistown não têm nenhuma visão errônea da história, muito menos uma visão trágica. Na verdade, é muito provável que, por baixo do pano, riam das pessoas tolas a ponto de ter qualquer tipo de visão. Quanto ao destino da civilização cristã na África, eles nunca deram a menor importância a isso. E esses — esses! — são os homens em cujas sórdidas garras ele vive!

A desenvolver: a reação do pai ao momento presente comparada
à sua: as diferenças e as semelhanças (primordiais).

1° de setembro de 1972
A casa em que ele mora com o pai é dos anos 1920. As paredes, construídas em parte com tijolos cozidos, mas no geral com tijolos crus, estão agora a tal ponto apodrecidas com a umidade que sobe da terra que começaram a esfarelar. Isolá-las da umidade é tarefa impossível; o melhor que se pode fazer é construir uma calçada de concreto impermeável em torno da casa toda e esperar que sequem aos poucos.
Em um guia de melhoramentos domésticos, ele aprende que para cada metro de concreto vai precisar de três sacos de areia, cinco sacos de pedra e um saco de cimento. Se construir a calçada em torno da casa com dez centímetros de profundidade, calcula, vai precisar de trinta sacos de areia, cinquenta sacos de pedras e dez sacos de cimento, o que exigirá seis viagens à loja de materiais de construção, seis cargas completas de um caminhão de uma tonelada.
A meio caminho do primeiro dia de trabalho, dá-se conta de que cometeu um erro calamitoso. Ou leu errado o guia ou em seus cálculos confundiu metros cúbicos com metros quadrados.
Vai precisar de muito mais que dez sacos de cimento, mais areia e mais pedra para assentar 96 metros quadrados de concreto.
Vai precisar de muito mais que seis viagens à loja de materiais; vai ter de sacrificar muito mais que apenas alguns fins de semana de sua vida.
Semana após semana, usando uma pá e um carrinho de mão, ele mistura areia, pedra, cimento e água; laje após laje, despeja o concreto líquido e nivela. Sente dor nas costas, os braços e pulsos estão duros a ponto de mal conseguir levantar uma caneta. Acima de tudo, o trabalho entedia. Mas não está infeliz.
O que ele se vê fazendo é o que as pessoas como ele deviam estar fazendo desde 1652, ou seja, seu próprio trabalho sujo. Na verdade, quando se esquece do tempo que está perdendo, o trabalho começa a assumir um prazer próprio. Pode existir uma laje bem assentada cujo bom assentamento é evidente para todo mundo.
As lajes que está assentando durarão mais que sua ocupação da casa, poderão durar mais até que sua estada na terra; e nesse caso ele terá, em certo sentido, enganado a morte. Uma pessoa pode passar o resto da vida cimentando lajes e toda noite cair no mais profundo sono, cansada com a dor do esforço honesto.
Quantos dos esfarrapados trabalhadores que passam por ele na rua são autores secretos de trabalhos que vão durar mais do que eles: estradas, paredes, pilares? Imortalidade de certo tipo, uma imortalidade limitada, não é tão difícil de conseguir afinal.
Por que então ele insiste em registrar sinais no papel, na vaga esperança de que pessoas ainda não nascidas venham a se dar ao trabalho de decifrá-los?