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No início dos anos 1980, a Bolívia era conhecida como a “república da quartelada”. Desde a independência, em 1825, até aquela época, mais de 150 golpes militares ou revoluções tinham agitado o país andino. Em 1970, por exemplo, quatro generais diferentes chegaram a se revezar num único dia no Palácio Quemado (sede do governo). A anarquia militar terminou em 1982 com a posse do presidente Siles Suazo. Desde então, a Bolívia conheceu hiperinflação, recessão econômica e muitos protestos – mas nunca mais pronunciamientos saídos da caserna. E note-se que, nos últimos dez anos, o país teve nada menos que seis presidentes, alguns derrubados por protestos populares, como Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003. Dois anos depois, o líder cocaleiro Evo Morales foi eleito presidente. Os militares permaneceram fazendo ordem unida nos quartéis e ninguém previa que voltassem a se tornar atores políticos. Mas agora, com a Bolívia temendo a eclosão de uma guerra civil, voltam os clamores pelos sons de clarins e o rufar de tambores. A promulgação unilateral da nova Constituição pelas forças governistas e a tentativa de desobediência civil das regiões mais ricas, como Santa Cruz de La Sierra, foram os estopins da crise. À esquerda e à direita, as Forças Armadas voltam a ser vistas como último recurso político. Enquanto a oposição acusa o governo de querer mobilizar tropas contra as regiões que desejam autonomia, o governo acusa seus adversários de baterem às portas dos quartéis enquanto se escuda na lealdade militar à “união da pátria”.

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PILARES Além dos movimentos populares, Morales agora se apóia nas Forças Armadas

A situação se radicalizou depois da votação da nova Constituição pelos deputados governistas da Assembléia Constituinte. No dia 24 de novembro, depois de um ano sem conseguir aprovar um único artigo, os governistas – que têm maioria simples na Constituinte – transferiram a sede da Assembléia, em Sucre, para um quartel, onde votaram a nova Carta sem a presença dos deputados oposicionistas. Em meio a protestos de rua, o texto foi aprovado por 138 dos 255 constituintes, sem considerar a exigência oposicionista de 2/3 dos deputados para legitimar a Carta. O segundo passo foi uma manobra que permitiu a aprovação de cada artigo da Constituição por maioria qualificada. Para evitar pressão dos partidos de oposição, os governistas transferiram a Assembléia Constituinte para Oruro, cidade controlada por partidários de Morales. Lá, no sábado 8, depois de 17 horas tumultuadas e com o apoio de uma multidão que explodia dinamites para “estimular” os ânimos revolucionários, 130 dos 160 deputados – a maioria do Movimento ao Socialismo (MAS), partido de sustentação do governo – aprovaram o texto constitucional. Os partidos de oposição boicotaram ou se abstiveram de votar. Entre outras coisas, a nova Constituição prevê centralização econômica nas mãos do Estado, divisão do país em áreas indígenas – com autonomia administrativa e judiciária em relação a departamentos – e convocação de um novo Parlamento. Como consolo à oposição, os constituintes determinaram apenas uma reeleição presidencial – em vez de eternizá-la, como era a intenção inicial. Mesmo assim, como pretende convocar um referendo revogatório de todos os cargos, Evo Morales poderá ficar no poder até 2018.

Em reação às manobras na Constituinte, as autoridades dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando – que juntos representam mais de 35% da população e quase 40% do PIB boliviano – anunciaram que não reconhecem a nova Constituição e prometeram proclamar a autonomia das regiões unilateralmente no sábado 15. Será a implementação da “Carta Autonômica”, documento que declara independência em relação ao governo central em temas como gastos públicos e organização fundiária. Em 2006, as quatro regiões disseram “sim” à autonomia regional num referendo, mas o “não” teve 58% em todo o país.

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PRESSÃO Manifestantes deram apoio aos deputados governistas

Rumores de uma iminente decretação de estado de sítio e de deslocamento de tropas do Exército começaram a circular nas principais cidades bolivianas. Alex Contreras, porta-voz da Presidência, admitiu que o governo central está enviando reforços policiais para Santa Cruz de la Sierra. “Isso foi feito para proteger a propriedade pública e privada”, justificou. Rubén Costas, governador de Santa Cruz, disse que os crucenhos “sabem que 6.300 homens estão vindo e é possível que iniciem uma militarização. Se vão militarizar, que militarizem, mas vai ter reação do povo”, prometeu.

“Falar de separação dentro da nossa república é um absurdo que não se permitirá, inclusive assim se manifestaram as Forças Armadas”, ameaçou o vice-ministro do Interior, Rubén Gamarra. O general Wilfredo Vargas, comandante das Forças Armadas, acusou os oposicionistas de ir “bater às portas dos quartéis” e disse que os governadores dos departamentos serão responsáveis se a situação política se deteriorar. Brincando com fogo, o governador do Departamento de Pando, Leopoldo Fernandes, convocou o baixo escalão militar à desobediência.

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100 “crucenhos”. Habitantes de Santa Cruz já pensam em abandonar o peso e cunhar a própria moeda

“Os militares estão unidos e prestigiados pelo governo. Participaram do processo de nacionalização de hidrocarbonetos em 2006 e estão envolvidos em programas sociais”, diz Ramiro Orias, da Resdal, rede latino-americana de especialistas em segurança e defesa. Certamente perfilarão diante do governo para evitar uma secessão. Mas a frágil democracia boliviana sobreviverá?