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A transformação da água em vinho é aceita pela Igreja Católica como o primeiro milagre realizado por Jesus. A bela passagem em Canaã da Galiléia marca o início da vida pública de Cristo e ilumina o poder e a ascensão de Maria sobre seu já adulto filho. Segundo o Evangelho de João, tocada pelo constrangimento desconcertante a que os noivos são submetidos devido à falta de vinho na celebração de um casamento, Maria pede a Jesus que interfira e resolva a situação. Surpreso, ele vacila em um primeiro instante, diante do pedido inesperado da mãe. “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora.” Ela insiste – e o filho, enfim, cede. “Maria educou Cristo a ter essa ternura, esse coração aberto diante da necessidade do outro, especialmente dos pobres”, diz dom Filippo Santoro, bispo de Petrópolis e secretário da regional Leste 1 da CNBB, no Rio de Janeiro. “Ao fazer o Senhor se comover com o infortúnio do casal nas bodas, ela acelerou um processo.”

O evento de Canaã é uma das raras referências bíblicas sobre o relacionamento mãe e filho entre Maria e Jesus. O próprio Vaticano minimiza a procura por respostas e provas históricas sobre questões não abordadas na Bíblia, que traz apenas três brevíssimos diálogos diretos entre Cristo e sua mãe. “A exaltação de Maria pela Igreja Católica impede o acesso à sua verdadeira história. Com o passar do tempo, ela foi transformada em um mito, e daí a dificuldade em se traçar qualquer perfil”, diz Valmor da Silva, doutor em ciências da religião e professor da Universidade Católica de Goiás.

Material mais farto é encontrado nos evangelhos apócrifos, escritos por diversos autores e elaborados como complemento dos textos bíblicos. Produzidos entre os séculos I e VII, esses documento não são reconhecidos pelo Vaticano e dividem historiadores, teólogos e até estudiosos católicos. O padre franciscano Jacir de Freitas Lima diz que, diferentemente de outras histórias por demais fantasiosas contadas nos apócrifos, as passagens de Maria nesses textos preenchem as lacunas bíblicas. “Os apócrifos são complementares e não invalidam a fé em Maria libertadora, de Lucas, por exemplo”, afirma frei Jacir, biblista e autor do livro História de Maria, mãe e apóstola de seu filho nos evangelhos apócrifos. “Maria será sempre o modelo de mãe intercessora, mas já é hora de acrescentar a isso a liderança apostólica e missionária da mulher Maria que os apócrifos nos legaram.”

A polêmica é alimentada porque, mesmo para passagens correspondentes, há diferenças entre as duas fontes documentais. Geralmente, os evangelhos apócrifos mostram diálogos mais afetuosos entre mãe e filho. “Quem consegue resistir ao pedido de uma mãe?”, teria respondido Jesus, segundo o Evangelho Secreto da Virgem, no episódio da boda, antes de realizar seu primeiro milagre. O mesmo texto mostra como Maria foi decisiva para Cristo seguir seu destino na Terra. Ela conclama um ainda inseguro Jesus a dar seqüência à sua missão iniciada em Canaã. “Que esperavas? Acreditavas que com os milagres e teus discursos as pessoas iriam se converter e seus corações se transformariam? Querido filho meu, tens que aceitar as coisas como elas são, e da mesma forma tens que aceitar os homens (…) Tens que te animar e seguir em frente (…).”

Os escritos apócrifos também a colocam como personagem central na ressurreição. Segundo o Evangelho de Gamaliel, Nossa Senhora foi a primeira pessoa a vê-lo quando Jesus voltou dos mortos, e não Maria Madalena, como diz a Bíblia. O texto conta que, desolada com a crucificação do filho, Maria não encontra conforto nas palavras de João, e, após uma noite e um dia inteiro, segue para o sepulcro onde o corpo do filho fora colocado. Não encontra cadáver algum, mas, sim, Jesus ressuscitado. Emocionada, emite-lhe bela saudação. “Ressuscitastes, então, meu Senhor e meu filho? Feliz ressurreição!” Cristo pede a ela que volte à cidade e dê a notícia a seus discípulos. “Nos apócrifos, Maria é uma mãe carinhosa, que não abandona o filho nunca”, afirma frei Jacir.

Tal doçura, para alguns estudiosos, não é encontrada nos textos canônicos. Para Valmor da Silva, a relação contada pelos evangelhos oficiais pode ser caracterizada como conflituosa. “São sempre passagens marcadas por tensão, entre pessoas de temperamento muito forte. Nas bodas de Canaã, por exemplo, a mãe praticamente se impõe. E Jesus se dirige a ela de maneira bem bronca”, diz. O teólogo defende a idéia de que a própria Bíblia apresenta uma Maria oposta à difundida pelo Vaticano. “A verdadeira Maria histórica, pelas poucas fontes que temos, era uma mulher muito mais corajosa, determinada e capaz de censurar o filho”, afirma. “É bem diferente da imagem bondosa e passiva propagada pela Igreja, que transformou Maria numa pessoa submissa. O Evangelho mostra que ela é uma mulher pronta para dizer não, para questionar.”

O diálogo em Canaã não é o único presente no Novo Testamento em que Cristo prefere chamar Maria de mulher em vez de mãe. Pouco antes da morte na cruz, ele repete o tratamento ao confiar a mãe ao apóstolo João Batista. “Mulher, eis aí o teu filho. Filho, eis aí a tua mãe.” A passagem é uma das preferidas do cardeal e arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer. Para ele, não há sinal algum de rispidez: naquele momento dramático, com tais palavras, Jesus teria entregue à mãe todos os que se tornariam seus irmãos e discípulos. “É por isso que a Igreja honra tanto a mãe de Jesus”, diz dom Odilo. “O tratamento de ‘mulher’ coloca Maria em paralelo com Eva, que foi a primeira ‘mulher’ e mãe da humanidade que pecou. Maria, nesse momento, torna-se mãe da humanidade redimida pela cruz de Cristo.”

Há outro trecho usado por teólogos para justificar o suposto relacionamento difícil entre Maria e Jesus. Durante pregação, Cristo é avisado de que sua mãe e seus irmãos estão no local e desejam vê-lo. “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”, responde Cristo, segundo o Evangelho de Mateus. Estendendo a mão para os discípulos, continuou: “Eis minha mãe e meus irmãos. Porque todo aquele que fizer a vontade de meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão e irmã e mãe.” Dom Filippo Santoro diz que não se trata de um discurso rude, mas extremamente objetivo sobre o que é prioritário na vida: o relacionamento com o mistério de Deus.

Isso não é consenso entre os teólogos. O professor Pedro Lima Vasconcelos, do programa de pós-graduação de ciências da religião da PUC de São Paulo, diz que esta passagem revela que Jesus se distanciou de sua família à medida que sua vida pública foi ganhando importância. “As palavras de Jesus pressupõem o rompimento desses laços familiares mais básicos. Um discurso desses só tem credibilidade se quem o pronuncia tiver vivido tal situação”, afirma. Vasconcelos ressalta que as únicas fontes disponíveis para análises não têm pretensões históricas. “Os evangelhos são muito pouco preocupados com uma descrição biográfica. Essa é uma preocupação moderna”, explica.

Um dos mais respeitados historiadores bíblicos da atualidade, o húngaro Geza Vermes concorda com Vasconcelos. Para ele, os chamados evangelhos da infância (como são conhecidos os dois primeiros capítulos dos evangelhos de Lucas e Mateus) estão mais para lendas do que fatos, por isso ele não os considera fontes históricas confiáveis. “A única passagem mais relevante, no Evangelho de Lucas, é quando Maria e José voltam ao templo para buscar Jesus. Eles levaram três dias para notar a falta do filho. É um indício de que talvez não fossem muito cuidadosos”, analisa Vermes, autor de As várias faces de Jesus e Natividade, recém-lançado no Brasil. O episódio citado pelo escritor é descrito tanto nos evangelhos canônicos quanto nos apócrifos e revela uma aguçada rebeldia do adolescente Jesus. Aos 12 anos, Cristo foi a Jerusalém com os pais para as festividades de Páscoa. Em vez de regressar com a caravana para NazaNazaré, preferiu permanecer no templo, sem avisar Maria e José – que demoraram três dias para encontrá-lo, entre doutores, ouvindo-os e interrogando-os. Ao ser censurado por Maria pela sua desobediência, Jesus é direto. “Para que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar- me nas coisas de meu Pai?”

Segundo o Evangelho de Lucas, Maria não entende muito bem as palavras do filho, mas, encantada com as coisas que diziam do menino, guarda os acontecimentos em seu coração e medita sobre o significado de tudo aquilo. “Ela mesma foi crescendo na compreensão do mistério de Deus que envolvia a Jesus e a ela própria”, diz dom Odilo. Já no Evangelho de Pseudo-Mateus, Maria é elogiada pelos doutores do templo pela eloqüência e sabedoria de seu filho. A face educadora de Nossa Senhora é abordada por diversas vezes neste documento apócrifo, segundo o qual seria dela a responsabilidade de dar broncas no travesso menino. Quando Jesus mata um garoto que atrapalhou sua brincadeira com poças de água, José diz a Maria: “Eu não tenho coragem de falar com ele. Tu deves repreendê-lo (…).” Ao ouvir os apelos da mãe, Cristo ressuscita o garoto mormorto. No Evangelho Secreto da Virgem, Jesus, um pouco mais velho, questiona o fato de uma mulher ser apedrejada, acusada de adultério. A insistência do menino faz com que Maria tenha longa conversa com ele sobre as relações entre homem e mulher.

O curioso é que Maria não era figura das mais importantes no cristianismo primitivo. O culto a Nossa Senhora ganhou força apenas a partir da Idade Média. A ponto de a Igreja Católica, hoje, considerar o relacionamento entre Maria e Jesus um modelo para as relações mãe e filho. “Filhos são dons que as mães recebem do alto, têm seus próprios caminhos a percorrer. Não pode haver um relacionamento de posse”, afirma dom Filippo. Para dom Odilo, a história de Maria e Jesus repete-se nos relacionamentos cotidianos. “Toda mãe, ao acolher o dom e o mistério de uma vida, não sabe, desde logo, tudo o que vai acontecer com seu filho”, diz. “Aos filhos, cabe valorizar a vida que receberam, honrar suas mães e realizar a missão que Deus lhes confiou.”