A médica M.H.V. inicia mais um dia de trabalho no Hospital Geral de São Mateus, bairro da periferia de São Paulo. Dezenas de pessoas a aguardam para consulta. Repentinamente, uma mulher entra em sua sala. Impaciente com a demora no atendimento, desfere um murro no rosto da especialista. Num posto de saúde, também na capital paulista, a médica K.S.F. é atingida com vários socos. A agressora? Uma mãe inconformada com a inexistência de exame de tomografia na unidade. Essas histórias fazem parte de um levantamento feito pelo Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo (Simesp) que retrata a dura rotina de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde vítimas de agressões físicas e morais de pacientes e seus familiares. Relatos do tipo fazem parte de uma realidade cada vez mais comum. O episódio vivido pelo técnico em radiologia Marco Rogério Aquino também é exemplar. Funcionário de um hospital da zona sul paulistana, acomodava um paciente para um exame de raio X quando foi surpreendido por dois homens que exigiam atendimento imediato. O radiologista tentou explicar que estava ocupado, mas foi ameaçado com uma arma e teve de interromper seu trabalho.

Um outro estudo, a tese de mestrado defendida pela pesquisadora Eliene Simões Cezar, da Universidade Norte do Paraná, evidencia esses fatos. O estudo envolveu 14 médicos e 33 funcionários do serviço de urgência de um hospital de Londrina (PR). Ele revelou que 86% dos doutores e 100% dos enfermeiros – isso mesmo, todos – foram vítimas de algum tipo de violência no ambiente de trabalho. Entre os técnicos, o porcentual de agredidos é de 89% e, no grupo dos auxiliares de enfermagem, de 88%. Na maioria dos casos, a agressão parte do paciente, de seus familiares ou acompanhantes. Os ataques, de acordo com a pesquisa, vão de xingamentos à pancadaria e até mesmo ameaças de morte.

No Estado de São Paulo os dados também são assustadores. O levantamento do Simesp aponta que 41% dos médicos já sofreram agressão física ou verbal no trabalho. O estudo mostra ainda que os hospitais públicos lideram o ranking, com 77% dos casos relatados. A incidência é maior nos prontos-socorros, com 61%. Nos ambulatórios, o índice é de 22%.

É um panorama grave. “Os médicos vivem uma situação de extrema vulnerabilidade. A responsabilidade é dos gestores, que não dão a atenção que a saúde merece”, afirma Cid Cavalhaes, presidente do Simesp. A professora Maria Helena Marziale, da escola de enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), concorda. Para ela, o estado precário do sistema público de saúde propicia esse cenário. As pessoas ficam horas na fila à espera de um atendimento que nem sempre é o mais adequado. “Sem falar da falta de equipamentos, medicamentos básicos e inclusive especialistas. Tudo isso provoca um desgaste emocional que pode culminar em atos de agressividade”, avalia. Como se não bastasse, a situação fica mais crítica porque casos de agressão também ocorrem com freqüência entre os próprios profissionais, muitas vezes estressados por causa das condições em que são obrigados a trabalhar. Há relatos de assédio sexual e moral, discriminação e maus-tratos. “O preocupante é que quase não há registro dessas ocorrências nos hospitais. Isso dificulta qualquer ação preventiva”, observa a pesquisadora Eliene.

Para a presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo, Solange Aparecida Caetano, essa é também a realidade de quem trabalha nos hospitais privados. A violência nem sempre ocorre por falta de atendimento adequado. “O assédio moral é a principal queixa. Mas o medo de perder o emprego impede que as vítimas registrem queixa. Quem reclama é demitido”, conta Solange. Nas instituições públicas, acrescenta Solange, o risco é outro. Como o medo de ser agredido é conhecido, há receio por parte dos médicos e enfermeiros de trabalhar nesses locais. Solange destaca que os profissionais que estão na linha de frente não são preparados para lidar com situações dessa natureza. “Em alguns hospitais há equipes de segurança, mas é comum encontrar guardas ocupados em fazer a triagem de quem vai ser atendido”, explica.

Ambientes marcados pela insegurança, tensão e descaso podem provocar outros danos aos profissionais. Segundo a psiquiatra Alexandrina Meleiro, da USP, cerca de 70% dos médicos desenvolvem depressão durante a residência, ou seja, ainda no começo da carreira. “A pressão, a sobrecarga, a sensação de impotência e até a decepção com a profissão são tamanhas que muitos adoecem. Em boa parte dos casos os problemas estão relacionados a transtornos da mente”, revela. Uma iniciativa que pode ajudar a melhorar esses quadros é a implementação do projeto Humaniza SUS. O programa nacional prevê, entre outras ações, a redução do tempo de espera para atendimento, com a ampliação do acesso aos tratamentos, valorização dos trabalhadores da saúde e a capacitação de médicos e enfermeiros para melhorar a relação com os pacientes. A idéia é boa. Resta sair do papel.