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CONSAGRADO
No auge da fama, nos anos 30, Picasso adere a valores que antes desprezava, compra carros de luxo e casas de campo

O trabalho artístico e a vida amorosa do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) sempre estiveram intimamente ligados. Ele foi um artista inquieto e um criador compulsivo – em 91 anos de vida, produziu mais de 1.880 pinturas, 1.335 esculturas, 880 cerâmicas e 7.089 desenhos. Também foi um grande namorador: casou-se duas vezes, o que não é nada excepcional, mas colecionou mais de dez casos extraconjugais famosos. A influência desse temperamento sobre a sua obra está na nova biografia A life of Picasso – the triumphant years, 1917 – 1932, escrita pelo historiador de arte britânico John Richardson, 83 anos, e recém- lançada na Inglaterra e nos EUA. Terceiro volume de um projeto ambicioso, a obra aborda os anos em que Picasso se rendeu à vida burguesa e deixou de lado a rota vestimenta de boêmio incorrigível para se vestir com roupas caras. Passou a dirigir carros esporte e adquiriu casas de campo (uma em Côte D’Azur e a outra em Dinard, ambas na França). É também nessa fase que ele se casa com a bailarina russa Olga Khokhlova e é pai pela primeira vez. Logo entediou-se, no entanto, com a calmaria do casamento e dedicou-se a diversas amantes, entre elas a adolescente Marie-Thérèse Walter, com quem manteve um apaixonado romance paralelo a sua vida conjugal.

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AMIGOS ÚTEIS
“Picasso foi leal a Cocteau (foto) até perceber que o apoio de Breton poderia ser mais útil”

O início do livro remete ao momento em que, para Picasso, o cubismo já acabara – o seu auge foi retratado por Richardson no volume anterior da biografia, publicado em 1997 (o primeiro saiu em 1990). Os chamados “anos triunfantes”, que estão no livro atual, inauguram- se com a participação do artista nos cenários e figurinos dos Ballet Russes, companhia dirigida por Sergei Diaghilev. Nesse período a sua arte muda radicalmente: salta do traço plano e geométrico do cubismo para as figuras monumentais e volumosas da escola neoclássica. Ao mudar e renovar o clássico, Picasso torna-se o “Mr. Modern”, na expressão de seu biógrafo. Ao longo dos anos 20 ele faz diversos recortes radicais em seu trabalho, entre eles a distorção das figuras a ponto de elas não serem mais reconhecíveis. Passa a referirse a si mesmo como um xamã capaz de transformações improváveis.

O ano de 1931 ganha do autor o epíteto de annus mirabilis (ano extraordinário), devido às obras monumentais criadas por Picasso, inspiradas na paixão secreta por Marie-Thérèse Walter e pela descoberta do surrealismo. Para Richardson, Marie-Thérèse “salvou” Picasso do “stress psicológico causado pela mediocridade burguesa em que se transformou a sua vida ao lado da esposa”. Algumas amizades também o influenciaram fortemente, como, por exemplo, a que teve com o poeta Max Jacob. A tela Three musicians (1921) faz referência a ele, companheiro de boemia do qual se afastou por pressão de Olga. Outro quadro, Woman with a tambourine (Odalisque,1925), é um recado para Matisse: “uma repreensão e uma zombaria” pelo fato de seu companheiro estar pintando odaliscas na França enquanto ele estava inventando o cubismo.

Richardson descreve Picasso como um perfeito dândi à solta pelos cafés e bordéis franceses e aponta falhas de caráter: “Picasso foi leal ao cineasta e escritor Jean Cocteau até perceber que o apoio ao escritor André Breton (um dos pais do surrealismo) era mais útil.” Ele conta as histórias equilibrando narrativa e análise e, como foi amigo do biografado, muitas vezes se envolve pessoalmente em alguns comentários. Cocteau é classificado como um homossexual rico, mimado e narcisista que sustentava um fã-clube em Paris. O livro termina reproduzindo a conversa de Picasso com um amigo espanhol. O artista diz: “Deus, na verdade, é um artista.” E completa: “Como eu… Eu sou Deus… Eu sou Deus.” A passagem expressa bem o espírito triunfante de um artista que acabara de se consolidar como mito da pintura mundial.

OS AMORES E A ARTE DE PICASSO
A s diferentes fases da pintura de Pablo Picasso não surgiram apenas de um programa estético ligado ao modernismo: muitas vezes as guinadas para o equilíbrio do classicismo e para o dilaceramento surrealista vinham do que passava em sua vida pessoal. Segundo o biógrafo John Richardson, os relacionamentos de Picasso influenciavam diretamente a sua arte – especialmente os românticos. Os seus altos e baixos amorosos explicariam os retratos calmos e realistas que pintou de Olga (primeiro à esq.) na fase em que o casal estava apaixonado, no início do casamento. E também as imagens agonizantes e desesperadas que fez dela, depois que conheceu a sua jovem amante Marie- Thérèse Walter. Ela, por sua vez, devido ao caráter clandestino da relação, aparecia em suas telas loiríssima, voluptuosa e radicalmente camuflada e disforme (segunda à esq.). Esses retratos apontam uma das transformações radicais no estilo do artista, mudanças que foram freqüentes nas décadas de 20 e 30.

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O CLÁSSICO E O SURREAL
Olga e Marie-Thérèse Walter retratadas em telas de 1926 e 1935, respectivamente