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Nos próximos dias, a preocupação das principais autoridades do Brasil e da Itália estará voltada para o Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Não porque de lá possa sair uma solução para o maior problema mundial neste momento, a crise econômica, mas porque os dois países elegeram como tema maior de suas relações diplomáticas – e até comerciais – o caso de extradição de um ex-ativista de esquerda, de 54 anos, chamado Cesare Battisti, acusado de quatro mortes em ações terroristas na década de 1970. O motivo de tamanha atenção dada a um assunto que tinha tudo para ser resolvido pelos trâmites normais da diplomacia, e sob a lei vigente, foi a forma como os dois governos decidiram lidar com o caso. Do lado brasileiro, o STF ignorou a jurisprudência sobre o arquivamento de processos de extradição depois de o Ministério da Justiça conceder asilo político ao réu. Do lado italiano, optou-se por encarar o refúgio de Battisti como se fosse uma nova queda do Império Romano no Ocidente.

Desde o anúncio da concessão do status de exilado político ao ex-terrorista, no dia 13 de janeiro, as autoridades dos dois países aceitaram debater o tema pela imprensa, em declarações regadas pela efervescência do sangue latino. Primeiro o ministro das Relações Exteriores da Itália, Ignazio La Russa, sugeriu o cancelamento de um jogo de futebol amistoso entre as duas seleções, marcado para a terçafeira 10, em Londres. Logo depois, o presidente Giorgio Napolitano acreditou que o refúgio a Battisti seria uma celeuma tão irreparável que era o caso de chamar de volta seu embaixador Michele Valensise, que retornou ao Brasil dias depois. A viagem a Roma não teve nenhuma serventia à solução do problema. O primeiro-ministro Silvio Berlusconi, cujas declarações são sempre uma contribuição ao anedotário político, apostou no caso para alavancar sua popularidade e tomou atitudes em sintonia com as palavras de ordem dos defensores da extradição como se estivesse também empunhando cartazes na porta da embaixada brasileira em Roma. Foi de Berlusconi o pedido para o STF reabrir o caso.

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A postura dos governantes ajudou a aumentar o sentimento dos italianos contra o Brasil, suscitando uma guerra ideológica anacrônica e um inédito sentimento antibrasileiro. A Relish, uma griff e italiana de roupas, decidiu aproveitar esta oportunidade e lançou uma campanha publicitária com fotos de policiais militares do Rio de Janeiro revistando, de forma abusiva e agressiva, duas mulheres na praia de Ipanema. Todas as reações em torno do caso – principalmente após a entrevista exclusiva de Battisti à ISTOÉ, quando revelou que recebera ajuda do serviço secreto francês na fuga para o Brasil e atacou a democracia na Itália – ignoram a história de amizade e integração entre os dois países. O caso Battisti foi suficiente para se esquecer que a comunidade ítalobrasileira alcança hoje mais de 30 milhões de cidadãos –muitos com dupla nacionalidade – descendentes da enorme massa de imigrantes que chegou aqui entre 1870 e 1960. Finge-se ignorar também que os dois países têm interesses comerciais imunes a este tipo de controvérsia (simbolizados por nomes como Pirelli, TIM ou Fiat).

No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva considerou o “caso encerrado” na quarta-feira 28, e, dias depois, foi obrigado a declarar que aceitará a decisão do STF, mesmo que contrária ao refúgio a Battisti. Embora possa vir a modificar a jurisprudência do próprio Supremo – que, em 2007, arquivou processo de extradição do padre colombiano Olivério Medina, militante das Farc –, está com a Justiça a última chance de uma solução negociada. Até mesmo o ministro Celso de Mello, relator do processo de Medina, aquiesceu: “Não há incoerência. O processo extradicional, como qualquer outro, tem conteúdo eminentemente dialético”, afirmou ele, que se disse impedido de votar.

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ESTINOS Battisti é solto na França em 2004 (à esq.),
e sua liberdade depende do STF, que pode
contrariar decisão de Genro e agradar
italiano Frattini (abaixo à esq.

Na quinta-feira 5, o Parlamento Europeu, instância legislativa da União Europeia, arrumou mais um argumento que talvez ajude o STF. Aprovou uma moção apresentada por quatro deputados italianos de centro-direita por apenas 46 votos (de um total de 785) contra 8, convidando o Brasil a reconsiderar a concessão de refúgio a Battisti. O Parlamento pediu ao STF para reconhecer a decisão da Justiça Italiana “tomada de acordo com os princípios legais da União Europeia”. Os deputados europeus acreditam que o refúgio de Battisti “pode ser interpretado como uma mostra de desconfiança em relação à UE, fundada sobre os direitos fundamentais e de liberdade”, porém não explicaram qual linha de raciocínio oferece base a esta desconfiança, até porque os debates no plenário foram mornos e burocráticos. A representante da Comissão Europeia, Mariann Fischer-Boel, alertou que o texto aprovado não muda a postura de não intervenção do bloco de 27 países na disputa bilateral.

O caso promete despertar mais polêmica quando for a julgamento. “Os atos do ministro da Justiça não estão submetidos à jurisdição do STF, mas do STJ”, acredita o ministro Marco Aurélio Mello. O maior opositor do ex-terrorista na Corte Suprema é o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, abertamente favorável à extradição. Embora Battisti seja o pivô do julgamento, pelo rumo político do caso, quem acabará sendo absolvido ou não é Tarso Genro. Neste pastelão italiano, o ministro da Justiça roubou a cena. Para defender sua posição, acabou batendo boca com o ministro das Relações Exteriores da Itália, Franco Frattini, que o acusou de terrorista. “O caso foi analisado por um ministro da Justiça que tem uma visão ideológica e política muito evidente de aberto apoio às ideias de guerrilha”, disse Frattini.”Isso só demonstra que ele não me conhece e não conhece nosso país”, respondeu o brasileiro. Genro mantém sua tese de que não recebeu provas testemunhais ou periciais dos homicídios pelos quais Battisti foi condenado. “Esse tipo de superatenção à questão do Battisti, inclusive, reforça a minha visão pessoal de que existe uma preocupação especial com ele, acima de todos os demais”, diz. O destempero verbal das autoridades dos dois países ameaça refletir em atos discriminatórios contra cidadãos brasileiros numa Itália açodada por uma onda xenofóbica.

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Colaborou Hugo Marques

Um escritor de romances pálidos
Cesare Battisti tornou-se escritor na França, quando, protegido pela chamada Doutrina Mitterrand, que concedia asilo aos terroristas italianos arrependidos, pôde se dedicar a uma atividade impossível de ser realizada em constante estado de fuga. De 1993 até hoje, publicou 15 títulos. Mas, com a queda daquela política francesa, em 2002, ele retomou novamente a estrada e é sobre isso que ele escreve em Minha fuga sem fim (Martins Fontes, 288 págs., R$ 47,30), sua obra mais recente e a única lançada no Brasil.

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“Os atos do ministro da Justiça não estão
à jurisdição do STF, mas do STJ”
Aurélio Mello

Trata-se, como se vê, de um livro de memórias, apesar de ele ter “horror a diários íntimos”. Mesmo não apreciando o golpe fácil do depoimento pes soal, seus livros “de carreira” sempre fazem referência ao ao passado de terrorista. Voltado para o gênero policial, que os franceses chamam de “polar”, na maior parte de seus enredos Battisti remete aos Anos de Chumbo na Itália. Em L’ultimo sparo, de 1998, por exemplo, acompanha-se a trajetória de Claudio, um jovem de 20 anos que passa pela cadeia em razão de pequenos roubos e depois adere à luta armada em Roma. Exatamente igual à juventude de Battisti. Outro título de sucesso, Le cargo sentimental, de 2003, já escrito em francês, centra-se em um ativista de esquerda que, mais uma vez exatamente como o escritor, busca refúgio na França, onde passa pelas dificuldades da adaptação e da sobrevivência. Lá descobre que a mulher que amava durante os anos na Itália morrera. Não existe nada de errado em se valer da experiência pessoal para fazer dela o alimento da literatura. Não é esse o problema do Battisti escritor. Como bem estabeleceu o crítico francês Thomas Clerc, ele “escreve pálidos romances policiais se comparado, em sua categoria, a um autêntico escritor possuído pela literatura e pela morte como um James Ellroy.” No primeiro capítulo de suas memórias, intitulado O adeus às armas, Battisti se apoia no escritor americano Ernest Hemingway, hábil na mistura de memória e ficção. “A cada vez que escrevo, preciso primeiro pedir desculpas. (….) Sempre começo pé ante pé, feito um ladrão”, defende-se. Pura chantagem. Jean Genet, por exemplo, que foi um ladrão e, como Battisti, também foi adotado pela inteligentzia de sua época, sabia que a palavra é muito mais potente que a confissão.