Para a socióloga, os que tentam?fazer a América? tendem a nãovoltar, diante das más notícias doBrasil: violência e corrupção

Há mais de dez anos, a socióloga Ana Cristina Braga Martes, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, estuda a migração de brasileiros para os Estados Unidos, assunto que se popularizou ao ser abordado pela novela América, da Rede Globo. O fenômeno remonta à década de 1960, quando começaram a se formar as primeiras redes sociais: grupos que foram para lá e passaram a fazer a ponte com seus familiares, amigos e vizinhos no Brasil. O estudo de Ana Cristina não se limita apenas a aventureiras como Sol, protagonista de América, mas analisa também a trajetória dos que entram legalmente nos EUA. A socióloga desembarcou em Boston (EUA) em 1994 para realizar sua primeira pesquisa, refeita em 2001. Constatou que havia sido criado um mito: o de que o brasileiro que vivia nos EUA era predominantemente homem, solteiro e de Governador Valadares (MG). Na verdade, os que decidiram tentar “fazer a América” vinham de vários Estados. Os últimos dados, inclusive, mostram que cresce o número dos que vêm de São Paulo e do Sul, justamente a região mais rica do Brasil. Um dado impressionante é o de que mesmo os brasileiros que estão em situação ilegal nos EUA, sem documentos, sentem que têm seus direitos de cidadão mais respeitados lá do que aqui. Talvez por isso cada vez mais brasileiros estejam dispostos a tentar tudo para conseguir concretizar o sonho americano.

ISTOÉ – O que a levou a estudar os imigrantes brasileiros nos EUA?
Ana Cristina Braga Martes

Comecei há 11 anos, quando fui para Boston.
A minha orientadora (na tese de doutorado), Ruth Cardoso, fez um trabalho
sobre os japoneses no Brasil. País de imigração, o Brasil estava se tornando
um país de emigração.

ISTOÉ – Quando se criou na cabeça do brasileiro a idéia do sonho americano?
Ana Cristina Braga Martes

No período pós-guerra, a França começa a deixar de ter ascendência no Brasil e essa influência passa a ser via Estados Unidos. O processo migratório não começa quando as pessoas saem do Brasil. Primeiro há a criação do sonho americano. As primeiras histórias de emigração remontam à década de 1960. Em Governador Valadares, por exemplo, havia um contato direto e permanente com os EUA por causa da vinda dos americanos em busca de minérios, pedras preciosas e para construir a estrada de ferro depois da Segunda Guerra Mundial.

ISTOÉ – Quando a emigração brasileira nos EUA atingiu o auge?
Ana Cristina Braga Martes

Na década de 1980, através das redes sociais: brasileiros que haviam ido para trabalhar como garçons, faxineiros, recepcionistas de hotéis. Redes sociais são formadas por familiares, amigos, vizinhos, pessoas da mesma cidade, e que fazem essa ponte. Além disso, a conjuntura econômica no Brasil daquele momento era favorável à emigração. Vários planos de estabilização econômica fracassaram e houve a instabilidade política após a morte de Tancredo Neves (1985) e durante o governo de Fernando Collor (1990/1992).

ISTOÉ – Qual o perfil dos brasileiros que vão tentar a vida nos EUA?
Ana Cristina Braga Martes

Em 1994, quando cheguei em Boston para fazer a primeira pesquisa, havia um mito desse perfil: o imigrante brasileiro seria homem, jovem, sozinho e de Governador Valadares. É possível que no início o perfil fosse esse. Mas a pesquisa mostrou outro cenário: homens e mulheres, solteiros e casados em proporção equiparada. A maioria, 90%, tinha entre 21 e 45 anos. Quanto à origem no Brasil, 47% vinham de Minas, 15% do Rio, 12% de São Paulo, 10% do Espírito Santo e 8% de outros Estados. É um fenômeno nacional, não só de Minas. O perfil educacional é o seguinte: pessoas que não conseguiram terminar o terceiro grau. Se entraram para a faculdade, não completaram ou se formaram em universidades não valorizadas pelo mercado de trabalho. Os que não têm muita expectativa aqui acabam indo embora. São pessoas com nível razoável de informação e com muita garra, dispostas a correr riscos. Imagine uma pessoa que não consegue falar nada de inglês ir morar nos EUA! Ela passa a ser quase criança de novo, não sabe falar, ler, se comunicar na rua. Precisa ter muita coragem.

ISTOÉ – Entre as duas pesquisas, uma feita entre 1994 e 1996 e a outra em 2001, que diferenças a sra. detectou com relação ao perfil dos brasileiros que emigraram para os EUA?
Ana Cristina Braga Martes

O que detectamos de diferente foi uma participação menor de emigrantes vindos da região de Governador Valadares e o crescimento do número de pessoas vindas do Sul, justamente a região mais rica do Brasil. Então, é preciso relativizar a idéia de que a emigração se explica pela pobreza. Mas é obvio que os fatores econômicos influenciam. Percebemos também que São Paulo apareceu mais nessa última pesquisa como ponto de origem de emigrantes, com um peso que nunca tinha tido antes.

ISTOÉ – Onde os brasileiros tendem a viver dentro dos EUA?
Ana Cristina Braga Martes

Estão indo para a região de Nova York, Boston, uma parte grande para o sul da Flórida. Para Miami estão indo empresas brasileiras que querem se globalizar. Outra parte está indo para San Francisco. Mas é impressionante como estou tendo notícias de brasileiros em todos os lugares que você possa imaginar nos EUA e até subindo para o Canadá.

ISTOÉ – Quais são as principais atividades dos brasileiros nos EUA?
Ana Cristina Braga Martes

Eles não têm vínculo empregatício, benefícios formais, são mal-remunerados. Têm empregos que a população nativa de modo geral não valoriza. Trabalham como ajudantes de garçom, entregadores de pizza, engraxates, em
faxina, na construção civil. Parte vai para a prostituição.

ISTOÉ – O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) anunciou que os imigrantes em vários países mandaram para o Brasil no ano passado US$ 5,8 bilhões. Em que esse dinheiro é aplicado?
Ana Cristina Braga Martes

A maior parte desse dinheiro, cerca de 70%, vai para ajudar as famílias que ficam aqui. Uma parcela é empregada na compra de imóveis. Outra parte é utilizada em aplicações financeiras, como a poupança. O dinheiro enviado pelos brasileiros vem provocando um impacto enorme nas pequenas cidades.

ISTOÉ – Dos US$ 5,8 bilhões, cerca de US$ 3 bilhões vêm de forma ilegal para o Brasil. O governo brasileiro já não deveria estar estimulando a volta desse dinheiro de forma legal?
Ana Cristina Braga Martes

É muito importante que esse dinheiro seja remetido de forma legal. Abaixar a taxa do valor da remessa é a maneira mais atraente de fazer isso e ter postos de recepção dentro das agências bancárias.

ISTOÉ – O governo americano propõe o livre comércio, com a Alca, mas quer barrar o trânsito de pessoas. Não deveria haver uma negociação em melhores termos com os americanos nessa questão dos imigrantes?
Ana Cristina Braga Martes

Se há liberdade para o capital de ir e vir, deveria haver liberdade para as pessoas também. Não há muito a ser feito do ponto de vista de barrar o fluxo migratório em nenhum lugar do mundo. Você pode comprar passagem, pode conseguir contatos por internet. É impossível barrar isso. É uma face da globalização que deve ser vista como tal, inclusive pelos respectivos governos, dos receptores.

ISTOÉ – O governo não deveria se empenhar mais para ajudar os brasileiros que estão lá fora?
Ana Cristina Braga Martes

Essa questão precisa estar mais presente na pauta governamental.
A Fundação Getúlio Vargas pretende realizar estudos sobre isso para apresentar propostas ao governo. O importante é fazer com que a migração seja objeto de políticas públicas. Mas isso já começou porque desde o governo Fernando
Henrique Cardoso tem havido modificações, principalmente na assistência
consular aos brasileiros. Há um consulado itinerante em Boston, que ajuda a comunidade nas suas ações locais. Mas as ações do governo ainda são tímidas. É preciso proteger os brasileiros, por exemplo, alertando para os riscos da perigosa travessia na fronteira (do México para os EUA). Nisso, a mídia tem cumprido um papel muito importante, publicando reportagens sobre o assunto (na edição 1846, de 2 de março deste ano, ISTOÉ publicou a reportagem de capa “Sonho e morte de brasileiros na fronteira americana”). O governo poderia também aproveitar a população brasileira que vive lá fora para fazer uma ponte de promoção para exportação dos nossos produtos, bens culturais, da marca Brasil. Seria, digamos assim, transformar o limão numa limonada, transformar uma coisa tão complexa e cheia de problemas em algo produtivo.

ISTOÉ – A forma como a novela América trata o tema é positiva?
Ana Cristina Braga Martes

É interessante que esse tema esteja sendo tratado na novela da Glória Perez. Ela não vende o sonho americano. Ao contrário, esclarece os riscos. E a travessia pelo México é tão arriscada que mostrar para os brasileiros o que acontece é muito bom. Outra conseqüência positiva que a novela poderá ter é reforçar na agenda pública o debate sobre a migração.

ISTOÉ – Os que deixam o País vão com a intenção de algum dia voltar?
Ana Cristina Braga Martes

Uma parte significativa quer voltar. Os que tomam a decisão de não voltar param de mandar dinheiro para o Brasil. Passam a economizar para comprar suas casas nos EUA. Muitos decidem ficar por lá porque assistem aos noticiários da tevê brasileira e se informam sobre a violência, a corrupção. Existe uma classe média alta que já está emigrando por uma questão de segurança e há uma classe média baixa que já emigrou e não quer voltar pelo mesmo motivo.

ISTOÉ – Nos EUA é muito forte a questão dos direitos dos cidadãos. Os imigrantes brasileiros sentem isso lá?
Ana Cristina Braga Martes

Constatamos algo impressionante. Mesmo os brasileiros que estão sem documentos nos EUA (ilegais), subempregados, que são considerados pobres, que não sabem falar a língua se sentem mais portadores de cidadania lá do que aqui. As pessoas que entrevistamos disseram que se sentem mais respeitadas nos EUA. Citaram vários exemplos: se entram numa agência bancária malvestidos, mesmo assim são bem-tratados; se adoecem, sabem que não vão morrer porque o hospital vai atendê-los mesmo se não tiverem dinheiro; seus filhos estudam em escolas públicas muito melhores, mesmo se comparadas às privadas que poderiam pagar aqui. As pessoas se sentem portadoras de direitos e com poder de consumo maior, de bens privados e coletivos.

ISTOÉ – Mas há a solidão de viver em um país estrangeiro, não?
Ana Cristina Braga Martes

Quando os migrantes imaginam que vão viver no Primeiro Mundo, não incluem em seus cálculos a solidão, fruto de uma sensação de que não estão em um lugar ao qual pertencem. Há também outra questão. Existem cinco categorias étnico-raciais nos EUA: asiático-americanos, latino-hispânicos, negros, brancos europeus e índios. Os brasileiros não se sentem latinos no mesmo sentido com que esse termo é usado nos EUA. Chegando aos EUA, os brasileiros têm que se identificar etnicamente, formalmente, quando vão preencher vaga para um filho na escola, para ter o seguro saúde. Existe uma tendência e até pressão para que os brasileiros se identifiquem como latino-hispânicos. Tenho um depoimento de uma menina que contou que a professora tentava forçá-la a ficar conversando com o grupo de latinos, mas a sua melhor amiga era do Leste Europeu.

ISTOÉ – Quando os brasileiros voltam, trazem uma nova visão de mundo, não? Essa influência já é percebida nas cidades de onde eles vêm?
Ana Cristina Braga Martes

Em Governador Valadares, por exemplo, foi criada uma organização para difundir o que há de positivo na cultura americana, inclusive a questão dos direitos dos cidadãos. Minha próxima pesquisa será com os brasileiros que retornaram, para observar como eles utilizam no Brasil o aprendizado que
tiveram lá fora.

ISTOÉ – O sonho americano é alcançado?
Ana Cristina Braga Martes

O sonho é inatingível. Mas os brasileiros passam a ter uma visão positiva da sociedade americana, em termos de direitos, de capacidade de consumo, de segurança, de tranqüilidade, de oportunidades. Do que eles mais sentem falta é da família, dos amigos, sofrem com a solidão. Nem todos q uerem voltar. Cada vez uma porcentagem maior dos brasileiros vai tender a ficar lá.