Morrer traz grandes benefícios a um político. Uma vez morto, o político pode ir ao próprio velório. Você fica sabendo quem foi, quem não foi. Quem chegou aos prantos. Quem derramou uma furtiva lágrima. Quem optou por um simples telegrama de pêsames. Mais ainda. Você pode ouvir (sem interferir, é claro) comentários vagos sobre seu caráter. Aí recomendamos prestar atenção nas rodinhas onde os amigos matam o tempo contando anedotas. Trata-se de um procedimento discutível. Mas piada em velório faz parte da natureza humana. Às vezes acontece até uma piada nova que pode fazer o defunto esboçar um sorriso. Ou pelo menos um esgar. Que fazer? É a vida que continua. Poucos políticos têm esse privilégio. Mais raros ainda são os políticos que, além de assistir ao próprio velório, podem dizer que foram até o inferno. Isso aconteceu com o atual deputado federal José Roberto Arruda, do PFL de Brasília, o candidato que lidera as pesquisas para a disputa do governo do Distrito Federal.

Ele teve de renunciar ao seu mandato de senador em abril de 2001 no rumoroso episódio da violação do painel de votação eletrônico – tido até então como inexpugnável a bisbilhoteiros. Apenas os segredos do painel não eram tão inacessíveis assim. Ninguém sabe exatamente como – apenas se desconfia – o senador baiano Antônio Carlos Magalhães descobriu quem tinha votado contra e a favor da cassação do ex-senador Luiz Estevão em junho de 2001. José Roberto Arruda, então numa ascendente – e até trepidante – carreira como senador em primeiro mandato, teve acesso à lista de votação. Ele era um dos líderes do governo no Senado. Em linguagem forense, ao tomar conhecimento da lista de votação, José Roberto Arruda ofendeu o artigo 325 do Código Penal. Ele quebrou “o sigilo da atividade investigativa”, segundo o então célebre procurador Luiz Antônio Francisco de Souza, muito procurado na época por jornalistas e especialista em produzir manchetes bombásticas.

“Eu teria mil atenuantes políticos, para o erro que cometi”, lembra Arruda. Ele conta que desprezou as várias fórmulas sugeridas para salvar seu mandato. “O fundamental era que cometi um erro.” Vistas hoje, as angústias que passaram a atormentar Arruda a partir do momento no qual seu “erro” foi descoberto soam quase como preocupações ingênuas. Afinal, o que Arruda chama de “erro” não implicou em prejuízo para o erário. Não significou nenhum tipo de “maracutaia” envolvendo dinheiro público. Não obstante, ele foi obrigado a renunciar ao cargo depois que o relator do processo, o senador petista Roberto Saturnino Braga, recomendou a cassação de ambos, ACM e Arruda.

Quando alguém observa esse pormenor, essa circunstância, digamos, atenuante, Arruda faz que não ouve: “Na verdade eu cometi dois erros. O primeiro foi ver a lista. O segundo foi ter mentido, na tribuna do Senado, e nos primeiros depoimentos, dizendo que eu não tinha visto.” A política é uma atividade permissiva. Cada vez mais permissiva, diga-se. O trânsito intenso, quase congestionado, de “mensaleiros” e/ou sanguessugas sobre os tapetes verdes da Câmara dos Deputados é prova disso. Mas, na política, não se pode mentir. Nem no plenário e muito menos numa Comissão de Inquérito. Aliás, aqui cabe uma correção. Não se podia mentir. O verbo tem de ir para o passado.

Hoje pode-se mentir sim. Inclusive com habeas-corpus preventivo dado pelo Supremo Tribunal Federal. Os tempos, positivamente, são outros. Por incrível que pareça, piores. O fato é que, mesmo antes da renúncia de seu mandato, José Roberto Arruda mergulhou num estado de depressão profunda. Uma depressão que se agravava dia a dia. As dez primeiras noites, após a eclosão do “escândalo do painel”, Arruda atravessou em claro. Depois passou a dormir com auxílio de drogas e graças a uma terapia intensiva com um psiquiatra. Ele não saía de casa. Tentou as chamadas curas alternativas tipo meditação transcendental. Chegou a passar horas sendo perfurado por agulhinhas de um acupunturista renomado da capital. Nada. A depressão insistia em dominar sua vítima. Médicos reviraram Arruda pelo avesso. Constataram um início de tumor na parede do estômago. Certamente provocado por stress.

Ele conta: “A sensação que eu tinha era de completo abandono. Quando encontrava pessoas que procuravam ser solidárias, eu simplesmente começava a chorar. Eu não tinha estrutura psicológica para conviver com aquela sensação de culpa.” Pior eram os “consultores de imagem” que insistiam que ele não podia renunciar. Depois da renúncia, esses mesmos consultores passaram a aterrorizá-lo com ameaças: “Como é que as pessoas vão acreditar em você agora? Nós temos que achar uma justificativa razoável senão sua carreira está liquidada. Você vai aparecer no vídeo e todo mundo vai dizer: ‘Olha lá o mentiroso!’” Arruda respondia. Tudo bem. Mas eu não agüento carregar essa mentira a vida inteira. Ele decidiu voltar a seu antigo emprego na CEB, Companhia Energética de Brasília. Na CEB, ele, engenheiro eletricista diplomado, havia sido simplesmente diretor da empresa nas gestões dos governadores José Aparecido de Oliveira e Joaquim Roriz. Depois, num novo mandato de Roriz, ocupou a Secretaria de Serviços Públicos do Distrito Federal. Em seguida, foi chefe do Gabinete Civil de Roriz, depois secretário de Obras, o homem que deu início ao metrô de Brasília. Já havia sido inclusive candidato ao Senado, tendo sido derrotado exatamente por Luiz Estevão.

Toda essa experiência de Arruda foi confinada numa salinha sem janelas, onde ele só recebia pilhas de papéis sem importância para assinar, um garçom que trazia o café duas vezes por dia e, com a mesma freqüência e atenção, a visita da faxineira, no final do expediente. Ah, sim… O funcionário José Roberto Arruda tinha de assinar o ponto diariamente. Isso no trabalho. Fora dele era pior. Um dia ele comentou com a mulher: “Você reparou como as pessoas deixaram de casar?” Ele era um verdadeiro arroz-de-festa em matéria de casamento, quase sempre convidado para padrinho. As pessoas, claro, continuavam casando. Apenas não o convidavam mais. Hoje, o candidato José Roberto Arruda, eleito em 2002 deputado federal com a maior votação do Distrito Federal (“Eu decidi começar de baixo, aprendi a ir degrau por degrau em vez de elevador”), acha que subiu muito rápido e pagou por isso um preço muito alto. De qualquer forma, diz que aprendeu algumas lições fundamentais:

A primeira lição: ele pensava que tinha fé em Deus, mas não tinha. Apesar de ter sido seminarista em Minas, onde nasceu, em Itajubá, Arruda diz que há momentos em que, no plano racional, você não consegue superar determinadas situações. “Você precisa se soltar, subir para o plano espiritual. De lá, a visão do mundo fica diferente. Tudo fica mais fácil.

A segunda lição: é preciso ter humildade para reconhecer os erros. E ele diz que reconhecer os próprios erros não é um hábito comum nos políticos. Nesse caso, se coloca como uma exceção notável à regra geral.

A terceira lição: na nossa sociedade, tudo é muito superficial. Inclusive as amizades, que muitas vezes são enganosas. Tudo somado, sofrimentos, angústias, alegrias ocasionais, José Roberto Arruda revela que, na verdade só começou a recuperar a auto-estima graças a um jogo de futebol quando ainda estava oscilando momentos de alguma serenidade com profundos estágios depressivos. Uns amigos passaram na sua casa e insistiram para ele ir assistir ao jogo do Gama que enfrentava o poderoso Santos. Gamense (ou gamista) de carteirinha, Arruda resistiu ao assédio, mas acabou cedendo. Botou um boné na cabeça para disfarçar a careca e foi ocupar o seu lugar habitual no estádio, de pé, junto ao alambrado. Quando sua presença foi notada, ele registrou um “zunzum” nas arquibancadas. Seguido de um profundo e até assustador silêncio. Arruda conta que subitamente passou a sentir, no ombro direito, uma dor inexplicável. Era como se a sensação de culpa fizesse pressão sobre ele. Antes do final do primeiro tempo, o Santos faz 1 a 0. De repente, do alto das arquibancadas, um gaiato grita: “Arruda… Arruda… mexe no placar!” As risadas foram descendo até chegar ao alambrado, onde Arruda estava agarrado. Ele virou-se e encarou a pequena multidão sorrindo. Recomeçava a ser o Arruda que toda Brasília conhece.