invisível


O major-aviador da reserva Marcos Cesar Pontes, o primeiro brasileiro a ir ao espaço, é um homem obstinado. Nascido em Bauru em 1963, filho de pais humildes, aos 14 anos ele fez um curso de eletrônica no Senai enquanto trabalhava na Rede Ferroviária Federal para custear os estudos. Resolveu que ia ser piloto. Tentou entrar na Escola Preparatória de Cadetes da Aeronáutica, em Barbacena, mas não teve sucesso. Os mais velhos diziam que ele não conseguiria, pois não tinha dinheiro nem “QI” (quem indica). Estudando no meio do barulho das locomotivas da RFFSA nos intervalos do trabalho e com livros emprestados dos professores, Pontes conseguiu passar direto na Academia da Força Aérea (AFA), de Pirassununga, aos 17 anos. Daí em diante, sua carreira decolou. Virou piloto de caças supersônicos e chefe de esquadrilha. Aos 43 anos, quando começava a ficar entediado pela falta de novos desafios, inscreveu-se no programa que recrutaria o primeiro astronauta brasileiro. Em 30 de março de 2006, partiu em direção à Estação Espacial Internacional (ISS) a bordo da nave russa Soyuz TMA-8, com outros dois tripulantes – um russo e um americano – e oito experimentos científicos. Virou herói nacional, mas a glória durou pouco. Passado para a reserva pouco tempo depois, ele foi duramente criticado e acusado de tirar proveito próprio da experiência. “Fui para a reserva por decisão do comando da FAB para que eu pudesse trabalhar melhor em Houston, para favorecer o programa espacial brasileiro”, defende-se Pontes. Mas hoje, com a participação do Brasil na estação internacional congelada, o astronauta ficou de mãos abanando. “Fico na expectativa e isso me incomoda”, diz. Nesta entrevista à ISTOÉ, Pontes critica o modelo adotado pela Agência Espacial Brasileira e diz que o País tem de fazer como os Estados Unidos e integrar a iniciativa privada aos projetos espaciais para que eles não fiquem à mercê de injunções políticas.

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"Hoje em dia, muita gente no mundo sabe quem é Santos Dumont por causa da Missão Centenário

 

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"O programa espacial brasileiro ficou muito marcado pelo acidente em Alcântara, em 2003

ISTOÉ – Em que pé está o programa da estação espacial brasileira
Pontes

Está meio parado. Não sei se alguém vai decidir que haverá outra missão espacial. O centro (Johnson Space Center, em Houston, no Texas, onde Pontes trabalha) concentra as agências espaciais de 16 países, além dos Estados Unidos, que participam da estação espacial. Fico lá à disposição da Agência Espacial Brasileira. Mas, enquanto não forem tomadas as decisões finais sobre o projeto em Washington, onde fica o QG da Nasa, não tenho muito o que fazer.

ISTOÉ – Por que parou?
Pontes

Por várias razões. O Brasil entrou na estação espacial internacional em 1997. Tínhamos a responsabilidade de produzir seis partes da estação espacial – placas adaptadoras – e a primeira deveria ser entregue em 2001. Essa entrega acabou sendo adiada para 2003, mas novamente não ocorreu, por uma série de problemas. As quantidades que o Brasil deveria produzir foram reduzidas. Depois, houve a restrição de vôos de ônibus espaciais pela Nasa. Como o Brasil não tinha fornecido nenhuma peça, a Nasa passou a responsabilidade dessas placas para empresas americanas. Agora, estamos aguardando as decisões dos governos americano e brasileiro. Em termos técnicos, o projeto está congelado. E, para nós, isso aconteceu no pior momento: depois de termos superado problemas de falta de verba, de ameaça de corte do próprio projeto, quando estávamos com tudo na mão, acontece isso. Nunca a situação técnica esteve tão boa: os protótipos já estavam prontos no Senac e poderiam ser passados para a indústria.

ISTOÉ – Sua passagem para a reserva pouco depois da Missão Centenário foi muito criticada. O que o sr. tem a dizer desse episódio?
Pontes

Isso é um fato comum em vários países. O primeiro ponto a se destacar é que astronauta é um cargo civil. É verdade que alguns provêm das Forças Armadas, mas a função de astronauta é completamente civil. Aliás, desde 1998, quando eu estava na Nasa, eu já não exercia nenhuma função militar na FAB. Quando a missão espacial se completou, em 2006, o comandante da Aeronáutica (brigadeiro Luiz Carlos Bueno) achou por bem me passar para a reserva. A idéia do comandante era que eu atuasse junto ao setor público e privado para que ficasse um pouco mais próximo do que acontece nos EUA, no Japão e em outros países desenvolvidos. Isso foi mal interpretado no Brasil. Aliás, eu estava em Houston tentando salvar as peças que o Brasil acabou perdendo quando começaram essas críticas. É engraçado: eu estava trabalhando e algumas pessoas dizendo aqui no Brasil que eu tinha me aposentado. É muito chato.

ISTOÉ – O que esse contato com a Nasa e o programa espacial dos EUA lhe ensinaram?
Pontes

Uma das coisas mais interessantes é a relação entre o setor público e o setor privado na área espacial. No Brasil, na pesquisa e desenvolvimento, essa relação é feita de uma maneira muito arcaica. Imagine o projeto de uma nova tecnologia espacial, um sistema de guiagem de foguete. Como é feito aqui? Toda pesquisa e desenvolvimento é feita e financiada com dinheiro público. Depois que o Estado desenvolve um protótipo, faz-se uma licitação para passá-lo para a indústria privada. É obrigatório por lei que se faça a licitação. Ora, essa lei é muito boa para a construção de prédios, edificações, coisas que não têm nada a ver com tecnologia avançada. Algumas vezes a empresa que perde a licitação entra na Justiça, como aconteceu no caso da torre de lançamento de foguetes de Alcântara. Aí, temos a morosidade da Justiça. Depois, a empresa olha para o protótipo e diz que não dá para fazer na linha de produção. Volta o projeto para a prancheta e mais tempo é perdido. Gasta-se muito dinheiro e no final o projeto está obsoleto. Tudo isso trava o processo.

ISTOÉ – E como deveria ser feito?
Pontes

Como nos países desenvolvidos. As empresas têm que participar do projeto desde a raiz, elas têm que ser co-autoras do projeto. Em vez de o setor público fazer a pesquisa e desenvolvimento de maneira exclusiva, deveria unir-se às empresas privadas para realizarem o projeto. Nos EUA, por exemplo, para se fazer um novo foguete entram a Nasa, Lockheed Martin, a Boeing, etc., todas ao mesmo tempo. E entram com determinada porcentagem de dinheiro, de recursos humanos. Quando se chega ao protótipo, as empresas envolvidas sabem a parte que lhes cabe e o projeto é feito de forma que vá direto para a linha de produção. Não tem licitação, mas cada uma tem sua porcentagem preestabelecida. Os riscos são partilhados entre o governo e as empresas. Compartilhar meios e recursos é o processo mais eficiente, mas isso exige uma mudança de cultura no Brasil.

ISTOÉ – Que benefícios a Missão Centenário trouxe ao Brasil?
Pontes

A Missão Centenário custou US$ 10 milhões. Eu fui apenas a ponta do iceberg. Quem definiu a missão, o orçamento e tudo o mais foi a Agência Espacial Brasileira. A missão realizou experimentos de microgravidade no espaço, dando início ao desenvolvimento desse setor no Brasil, que está um pouco atrasado. Esses experimentos funcionaram perfeitamente e deram resultados concretos. O Brasil, por exemplo, importava tecnologia de controle de temperatura e agora, graças a um dos experimentos, tem tecnologia nacional. Depois, fez a comemoração do centenário do vôo de Santos Dumont. Hoje em dia muita gente no mundo sabe quem é Santos Dumont por causa daquela missão.

ISTOÉ – Eles concordam que Santos Dumont foi melhor que os irmãos Wright?
Pontes

Eu disse que ele foi o primeiro que decolou, sozinho, que controlou o avião (risos). A outra função da missão foi divulgar o programa espacial brasileiro, que existe desde 1961. Até então, o nosso programa estava marcado negativamente pelo acidente que destruiu a base de lançamento de foguetes em Alcântara, em 2003. Além disso, pretendia- se incentivar o público mais jovem ao estudo da ciência e tecnologia, particularmente tecnologia espacial. Porque não adianta ter um grande programa espacial se não tiver ninguém para trabalhar na área. A Nasa, por exemplo, tem um site só para crianças, o Nasa for Kids. Pessoalmente, acho que os aspectos educacionais foram muito importantes. Os efeitos vão aparecer daqui a 20, 30 anos, quando essas crianças vão dirigir a Agência Espacial, por exemplo.

ISTOÉ – Um programa espacial é prioridade para um país tão carente como o Brasil?
Pontes

Nas minhas palestras muita gente me pergunta: tem gente morrendo de fome, como o Brasil vai se preocupar em lançar foguetes? Veja só o exemplo americano: a Nasa tem dez centros espaciais e um quartel-general, cada um deles empregando dez mil pessoas, num total de 100 mil. No final das contas, isso é mais importante: nós pensamos no espaço como processo de futura colonização de planetas, como desenvolvimento para novas tecnologias médicas, mas temos que pensar também no dia-a-dia das pessoas, na criação de empregos diretos e na produção de bens de alto valor agregado. O programa espacial é um círculo virtuoso benéfico para a sociedade que o desenvolve. Se alguém diz que tem gente morrendo de fome, eu pergunto: se você fosse muito pobre, colocaria seus filhos na escola ou pediria esmola? Respondem que os colocariam na escola porque não gostariam que eles tivessem o mesmo destino.

ISTOÉ – Como está o programa espacial brasileiro após o acidente?
Pontes

Por causa dessa dependência do setor público, esse programa oscila muito com as políticas de governo. No começo existe um projeto, incentivos, etc. De repente, mudam-se as prioridades políticas e o projeto perde incentivo. Não adianta um projeto com um bilhão num ano e um milhão no outro. O principal é manter a continuidade. Veja o exemplo de Aramar, que quase fechou por falta de continuidade. Se houvesse a participação da empresa privada nesses projetos desde o início, a tendência seria reduzir essa dependência das oscilações políticas. Ter o capital envolvido, o projeto sendo tocado pelo ritmo de uma empresa privada faz as coisas andarem.

ISTOÉ – Como está sua situação hoje?
Pontes

Eu poderia ser utilizado dentro da Agência Espacial Brasileira, desenvolvendo alguma coisa no programa espacial. Mas fico na expectativa de, quem sabe, um dia me utilizarem novamente. Posso fazer contatos internacionais, um novo vôo espacial, a aproximação do setor público com o setor privado. E, principalmente, posso passar para a frente o que aprendi.

ISTOÉ – Seu trabalho em Houston não é remunerado?
Pontes

Tenho o salário da Força Aérea, tenho minha empresa, faço consultorias e dou palestras, e eu mesmo estou me bancando em Houston. Estou à disposição do Brasil. Mas sou eu que me mantenho; ninguém me encaixou em lugar nenhum. Eu espero que o programa espacial tenha uma definição neste ano, abrindo novas perspectivas. Se cancelarem o programa, tenho a opção de continuar em Houston e, no Brasil, no setor privado, fazendo conexão com o setor público. Para isso, espero que a Fiesp me ajude. Se nada disso for possível, trabalho no setor privado.