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CONFRONTO Policiais e manifestantes entram em choque em várias cidades. Em Sucre, a polícia deixou a cidade e a população teve que lidar sozinha com os distúrbios

Depois de violentos distúrbios de rua que deixaram três mortos, coisas estranhas começaram a acontecer na cidade. Toda a força policial fugiu quando um agente da lei foi linchado pela multidão e seu corpo jogado num barranco. As portas da prisão se abriram e mais de 100 presos fugiram, mas 30 deles preferiram ficar, passando a cuidar do cárcere. Os distúrbios tinham sido provocados por cidadãos inconformados. Dias antes, os deputados constituintes do partido do governo aprovaram a nova Constituição do país num quartel, sem a presença dos parlamentares da oposição. A cidade virou um pandemônio. Dias depois, descobriu-se que o agente que fora o pivô da fuga da polícia não tinha morrido, apenas fugira da turba. Não, não é o início do mais novo romance de Gabriel García Márquez, nem mesmo de algum outro autor do “realismo fantástico”. Tudo isso realmente aconteceu na semana passada em Sucre, capital oficial mas não de fato da Bolívia. Esse foi o mais recente sintoma da fratura social que há meses divide o país entre o Leste rico, onde estão os empresários e a classe média de maioria branca e onde é gerado 60% do PIB, e o Altiplano, onde se concentram os índios e camponeses pobres, que apóiam o governo esquerdista do presidente Evo Morales.

Sucre é a sede da Assembléia Constituinte instalada em agosto de 2006. As discussões estavam paralisadas há três meses por causa de um impasse sobre o status da capital do país. A oposição queria que a nova Carta devolvesse a Sucre a condição de capital de fato da Bolívia, uma vez que ela já é capital oficial. Ocorre que em 1889, uma guerra civil vencida pelo Ocidente levou para La Paz os poderes Executivo e Legislativo. Só o Judiciário ficou em Sucre. O tema foi retirado da Constituinte em agosto passado pelo Movimento ao Socialismo (MAS), partido do presidente Evo Morales. A oposição montou no cavalo de batalha de Sucre e passou a boicotar a votação da Carta, enquanto manifestantes impediam as sessões legislativas. Na noite do sábado 23, 147 deputados do MAS foram para o quartel do Exército La Glorieta. Horas depois, o texto da nova Constituição estava aprovado por 136 dos 255 constituintes. Entre outras coisas, a Carta prevê a propriedade estatal sobre recursos naturais, instaura um Congresso unicameral com representação indígena e permite a reeleição do presidente. Formalmente, os artigos ainda precisam ser aprovados, um por um, por 2/3 da Assembléia Constituinte.

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Nos dias seguintes, a crise se agravou. Em La Paz o governo – que tem maioria na Câmara mas não no Senado – colocou manifestantes na rua para constranger a entrada de parlamentares de oposição. Assim, conseguiu aprovar duas medidas: autorizou que a Constituinte possa se reunir em qualquer parte do território nacional – antes era só em Sucre –, e criou a “renda dignidade”, que dá US$ 300 anuais para pessoas com mais de 60 anos que não tenham aposentadoria. O dinheiro será retirado do repasse às regiões, o que enfureceu ainda mais a oposição. Em resposta, os governos, o comércio e as principais empresas de seis Departamentos da Bolívia – Santa Cruz de La Sierra, Tarija, Cochabamba, Chuquisaca, Beni e Pando – deflagraram uma greve geral contra o governo. O MAS e seus aliados dizem que esse movimento do Leste rico é uma “guerra econômica” da oligarquia para derrubar Evo Morales.

“A situação da Bolívia está se deteriorando e pode trazer sérias conseqüências para o Brasil”, disse a ISTOÉ o professor Günther Rudzit, doutor em ciência política e especialista em segurança internacional. “Diferentemente de Hugo Chávez, Evo Morales não conta com o apoio da maioria da população nem tem recursos econômicos à sua disposição”, já que a parte dinâmica da economia boliviana está nas regiões governadas pela oposição. Para ele, tal situação é pior para o Brasil do que a crise política na Venezuela, pois se o Leste abastado quiser se separar, o fornecimento de gás ao Brasil estará ameaçado. E o Exército boliviano pode vir a ser o fiador da unidade nacional. Sem contar a ameaça de intervenção militar da Venezuela para evitar um golpe contra Evo Morales. “As perspectivas não são muito favoráveis”, conclui. É para realismo mágico nenhum botar defeito.

DECISÃO NA VENEZUELA
O governo Hugo Chávez enfrenta neste domingo 2 seu teste decisivo nas urnas. Desde 1998, ele foi eleito e reeleito quatro vezes e todas as suas propostas levadas a plebiscito foram aprovadas, num total de nove pleitos, um para cada ano de mandato. Desta vez, Chávez está propondo uma reforma constitucional que, entre outras coisas, introduz a possibilidade de reeleição presidencial permanente, aumenta o poder do Executivo, inclusive no controle da política monetária, além de introduzir uma série de proposições de caráter social, como a redução da jornada de trabalho. Estudantes e oposição têm realizado protestos quase diários contra o plebiscito em várias partes da Venezuela, principalmente em Caracas. Um operário foi morto numa dessas manifestações. As pesquisas indicam um empate técnico entre o “sim” chavista e o “não” oposicionista.