TUCA VIEIRA/FOLHA IMAGEMO amor à pesquisa histórica levou o carioca Kenneth Light, 69 anos, a uma descoberta de ouro às vésperas dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil. Ele encontrou no Arquivo Nacional da Inglaterra uma série de “livros de quarto”, os diários de bordo das naus britânicas que escoltaram os nobres portugueses. Foi desses volumes recheados de detalhes que nasceu a obra Transferência da capital e corte portuguesa para o Brasil – 1807-1821, que Kenneth lança esta semana em Portugal. Trata-se de um resumo do mais completo levantamento já feito sobre a travessia do Atlântico pelos Orleans e Bragança, que partiram de Portugal no dia 29 de novembro de 1807. O pesquisador gastou uma década coletando minúcias da navegação e compilou suas descobertas em uma edição de 40 exemplares, doados em 1999 a instituições que estudam a história portuguesa. Em março de 2008, a preciosidade chegará ao leitor comum, publicada no Brasil pela Editora Zahar.

Nascido no Brasil e criado em Londres, Kenneth era um executivo – trabalhou na Souza Cruz – até se aposentar, em 1990, quando decidiu TUCA VIEIRA/FOLHA IMAGEMestudar história britânica, portuguesa e brasileira. Queria fazer algo inédito, produzir o que nenhum historiador tivesse conseguido. Já era freqüentador de Petrópolis e do Museu Imperial, um dos mais visitados do Brasil. Resolveu então investigar a viagem liderada por dom João VI e que mudaria o destino do Brasil. Depois de ler quase 300 livros sobre o príncipe regente, percebeu que ninguém havia escrito um livro consistente sobre a travessia do Atlântico pelos Orleans e Bragança. “Em uma biografia de três volumes, no máximo três parágrafos tratavam da viagem. Decidi escrever.” Kenneth passou um ano pesquisando em Lisboa, em Madri e no Rio de Janeiro. Não encontrou nada.

Lembrou-se então de que a corte fora escoltada por naus britânicas. Correu para o Arquivo Nacional da Inglaterra e encontrou seu tesouro, os tais livros de quarto das naus de escolta e os relatórios dos capitães ao almirantado inglês.

Mergulhou também nos arquivos da força naval britânica. Tudo era virgem: havia sal no meio dos livros, o mesmo sal inalado por Maria I, João VI, Carlota Joaquina e Pedro de Alcântara, entre os mais de dez mil passageiros e tripulantes.

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DESCOBERTA
Kenneth Light (à dir.) encontrou na Inglaterra os diários de bordo das naus britânicas que escoltaram a família real, cujo embarque foi retratado em obra anônima (no alto). A tela encomendada (à esq.) mostra a chegada da esquadra

Ficará frustrado o leitor interessado apenas em detalhes sórdidos de alcovas ou peripécias reais. “Livros de quarto não registram fofocas. Não são políticos, mas trazem fatos friamente anotados para servirem a processos jurídicos”, diz Kenneth. “Após cada viagem, o navio sofre auditoria quanto aos gastos, consumo, condições do tempo, velocidade, sinais recebidos e enviados, velas abertas em cada momento, registros das embalagens de alimentos.” Ou seja, os diários tratam da trajetória das naves, sempre marcada por tempestades e tormentas, e não de seus ocupantes. Sabe-se, no entanto, que João e Carlota viajaram em navios separados, que a comida era péssima e que não havia banheiros a bordo. Kenneth gastou mais três anos lendo e transcrevendo para o computador os escritos originários das naus inglesas que bloqueavam o rio Tejo para garantir a partida da corte portuguesa, impedindo ataques das tropas de Napoleão Bonaparte. O conquistador francês tentava sufocar a Inglaterra, fechando os portos dos demais países europeus aos produtos britânicos. Portugal, aliado da Inglaterra, não seguiu o embargo e continuou o comércio com os ingleses. Napoleão ordenou então a invasão do território português. Foi por isso que a família real decidiu fugir às pressas para o Brasil.

Os escritos das naus inglesas encontrados por Kenneth eram feitos com penas de ganso. “Não existia nem mata-borrão. Secavam com um pó despejado de um saleiro, jogando pontos por toda parte e tornando difícil a distinção das letras”, diz o autor. No afã de resgatar em detalhes a viagem mais importante da história do Brasil, Kenneth encomendou ao inglês Geoff Hunt RSMA – chamado assim por presidir o Royal Society of Marine Artists – um quadro sobre a chegada da esquadra ao Rio, às 15h de 7 de março de 1808. Ele também percorreu de barco a Baía de Guanabara, seguindo ponto a ponto as indicações fornecidas pelos livros de quarto. Kenneth só não revela o valor pago pela obra, atualmente em exposição no Museu Imperial de Petrópolis.