SOLUÇÃO Engenheiros d ão os ajustes finais nas câmaras de refrigeração. No detalhe, a entrada da arca na montanha de Svalbard

O futuro a Deus pertence. Nisso acreditam os religiosos e acreditava também o bom Noé, personagem bíblico que, segundo a tradição do Antigo Testamento, construiu uma enorme arca e nela preservou do dilúvio casais de animais de diversas espécies. Teria sido assim que a humanidade e os bichos conseguiram seguir a sua jornada. Uma eternidade de catástrofes naturais depois, também agora um grupo de cientistas acredita que o futuro do planeta não pertence exclusivamente ao homem – só que, dessa vez, a ameaça vem sobretudo dos bilhões de asteróides que nos cercam e podem se espatifar contra a Terra. Pois bem, os pesquisadores acham que é hora de construir uma nova arca. Mas nada de animais. No lugar deles, para que o homem sobreviva a derradeiras tragédias, é necessário armazenar cerca de três milhões das mais diversificadas sementes. Ouçamos o que diz Cary Fowler, diretor da Global Crop Diversity, empresa norueguesa responsável pela parte científica e tecnológica do projeto da nova arca: “O futuro, à incerteza pertence.” Segundo ele, caso ocorra a destruição, as poucas pessoas que sobreviverem só irão dar continuidade à espécie se tiverem o básico para a vida – um pouco de ar, água e alimentação.

A arca projetada pela equipe de Cary Fowler é um sofisticado armazém tecnológico construído nas entranhas de uma montanha no Ártico. O prédio de concreto é protegido por muros, portas de aço e detectores de movimentos. Ursos polares passeiam por seus arredores, tornando o local um dos mais impenetráveis do mundo. É curioso imaginar que tudo aquilo que plantamos e cultivamos até hoje caiba no espaço de 800 metros quadrados. Mas não importa. Será a partir desse armazém no arquipélago norueguês de Svalbard, pensado para resistir durante milhares de anos, que a humanidade tocará para a frente a sua história. Assim como as suas dimensões, também o custo desse depósito é relativamente pequeno: US$ 3 milhões. A iniciativa foi do governo da Noruega e teve apoio de bancos públicos e privados e da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). O instituto brasileiro Cenargen (Centro Nacional de Recursos Genéticos da Embrapa), mundialmente reconhecido pelo seu rigor nas pesquisas, também foi convidado a integrar o grupo de cientistas que cuidam do projeto. Não é para menos: a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) montou recentemente uma supergeladeira de 100 metros quadrados para guardar três mil mudas de legumes e dez mil sementes de frutas e verduras. “Se acontecer um desastre ambiental que leve à escassez desses alimentos, podemos recuperá-los em laboratório e introduzi-los novamente em campo”, diz Leonardo Boiteaux, pesquisador da Embrapa.

Embutida cerca de 300 metros no interior de uma montanha e batizada pelo governo norueguês de “a caixa forte do juízo final”, a nova arca no arquipélago de Svalbard entrou em sua fase final de construção na semana passada, quando as três câmaras que vão abrigar as sementes começaram a ser resfriadas. Pelos próximos dois meses, a temperatura interna será reduzida dos habituais cinco graus negativos para 18 graus negativos. Nesse gélido patamar climático, sementes de trigo e arroz podem sobreviver além de mil anos. O material será armazenado em pacotes selados a vácuo, depois guardado em outras embalagens também seladas. A baixa temperatura e o oxigênio restrito manterão as sementes com o metabolismo baixo e retardarão seu envelhecimento. Mesmo com a armazenagem especial, algumas sementes podem se tornar inférteis após algumas décadas. Por isso, está previsto um “replante” para colheita de novas amostras.

Os pesquisadores enfatizam que todas essas providências não serão úteis apenas em caso de desgraça – e, claro, torcem para que a utilidade se revele em problemas menores. “Se em qualquer lugar do mundo um banco de sementes perder amostras, elas não terão sumido completamente. Esse novo banco do Ártico terá exemplares de reposição”, diz Fowler. “A verdade é que nem vamos precisar de asteróide batendo na Terra para essa arca ser útil porque infelizmente os erros humanos acontecem e perdemos diversidade o tempo todo.”

Inicialmente os responsáveis pelo banco de sementes centrarão os seus esforços naquelas que são importantes para a produção alimentícia e para a agricultura sustentável. Mas, como ele possui capacidade para abrigar até 4,5 milhões de amostras, armazenará também outras variedades menos vitais. A idéia de se usar o arquipélago gelado para preservá-las tem uma explicação geopolítica e outra climática: a primeira é que se trata de uma região pacífica, afastando-se assim os riscos de eventuais atentados terroristas. Quanto ao segundo motivo, deve-se ao fato de essa área ser praticamente imune a terremotos e furacões. Além, é claro, de sua temperatura gelada. “É o melhor freezer do mundo”, diz Fowler.