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As comunidades indígenas tupinambás, que existiram no Rio de Janeiro e ao Norte do País, estavam predestinadas ao canibalismo. Era essa a única saída que eles conheciam para alcançar alegria e prazer após a morte e assim reservar o seu lugar numa dimensão que em sua mitologia era chamada de terrasem- mal. No livro Meu destino é ser onça (Record, 270 págs. R$ 31,20), o escritor carioca Alberto Mussa procura traçar um amplo panorama das crenças e dos mitos compartilhados pelos tupis nos séculos XVI e XVII.

Para isso recorre a relatos clássicos e a outros documentos menos conhecidos de autoria do frade católico francês André Thevet, que viajou pelo interior das terras americanas com um intérprete e registrou detalhes sobre rituais, crenças e mitos celebrados pelas populações indígenas. Essas informações foram cotejadas com publicações de autores como Hans Staden e dos padres José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, feitas na mesma época, com o objetivo de se chegar à mais completa reconstituição da história desses povos. O resultado é uma espécie de "obras completas" da cultura antropófaga, incluindo verbetes com explicações sobre o vocabulário tupi e suas representações míticas.

Esse mergulho na trajetória, no culto e nas fábulas dos tupinambás descortina detalhes do mito primordial que séculos mais tarde seria a inspiração do Manifesto antropófago do movimento modernista liderado por Oswald de Andrade. Os modernistas se apropriaram da ideia original que rezava: devore o inimigo para chegar ao bem.

Usaram isso para compor o ideário nacionalista que defendia que a cultura brasileira devia "deglutir" as influências americanas e europeias e criar algo novo e genuinamente nacional a partir desse "mal inevitável". Oswald proclama: "Tupi or not tupi." A conclusão de Mussa vai além da tese oswaldiana ao constatar que "o rito antropofágico era para os índios a principal aquisição da cultura, capaz de transformar em bem o mal inerente à natureza." O autor ressalta que em diversas crônicas há uma franca exaltação dos valores canibais como condição essencial para a boa convivência das tribos.

O livro tem uma linguagem despretensiosa e nada acadêmica e termina por absolver os tupinambás por terem hábitos que tanto horrorizaram os europeus que aqui aportaram. Logo na dedicatória o autor escreve: "Aos meus anônimos antepassados, fundadores da minha linhagem materna, que – nos seus tempos de glória – mataram e comeram muitos inimigos." Afinal, explica Mussa, no jogo canibal cada grupo depende desses inimigos para atingir, depois da morte, a vida eterna. E, ao final, reitera a pureza do povo indígena: "O mundo dos nossos antepassados era a própria terra-sem-mal, porque nela toda violência equivalia a uma espécie de bênção."

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"No jogo canibal, cada grupo depende de seus inimigos para atingir, depois da morte, a vida eterna de prazer e alegria"
Alberto Mussa


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