ANA PAULA PAIVA/AG. ISTOÉ

Festa Niemeyer decidiu comemorar seu aniversário numa reunião com amigos

A passagem da idade faz com que as paixões percam a tensão e abre espaço para muita paz e liberdade. Mas a velhice não é um passe de mágica, não muda o caráter dos homens, e será pacífica e libertária apenas para quem já carrega virtudes desde a juventude. É, em linhas gerais, o que diz Sócrates no Livro I da República, de Platão, e se encaixa perfeitamente no perfil de Oscar Niemeyer, que completa 100 anos no próximo dia 15. O Arquiteto do Século, seu título internacional, é homenageado agora e será eternamente pelas obras que realizou, a maioria desafiando a gravidade com tijolo e cimento – como fez no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói, no Rio –, retorcendo o que teimava ser uma reta – vide o sinuoso edifício Copan, em São Paulo –, abrindo rasgos em tetos para deixar o céu entrar no ambiente, levando junto lirismo e beleza, a exemplo da Catedral de Brasília.

Seus projetos são únicos; o que não significa unanimidade. Basta citar Brasília, a cidade cujos prédios nasceram em sua prancheta. Porém, quem tem o privilégio de conhecer seu pensamento na idade avançada há de comemorar, também, outras virtudes menos badaladas. Como a dignidade, temperança, tolerância, decência, honra, sobriedade e simplicidade. Na hierarquia social, Niemeyer é um soberano. Mas se comporta como súdito. Este é o centenário de quem sabe edificar – nos mais variados e amplos sentidos desta palavra.

Reconsiderar decisões também é um gesto de grandeza do qual ele é capaz. Embora tenha anunciado que não comemoraria o aniversário este ano, cedeu aos apelos e revela a ISTOÉ que fará “uma reunião muito simples” na Casa das Canoas, sua antiga residência, em São Conrado, no Rio, e que hoje é aberta ao público. O arquiteto esclarece que “não haverá nenhuma festa especial nem fanfarras”. Para ele, fazer 100 anos não é especial. “Quem viveu um tempo considerável, como eu, teve, infelizmente, muitos momentos tristes, como a experiência de perder entes queridos”, explica. À pergunta sobre o que acha que fez de mais louvável para ser alvo de tantas homenagens, ele reafirma: “Sintome feliz com o reconhecimento de minha obra de arquiteto. Mas, para mim, a vida é mais importante do que a arquitetura. A vida, a mulher, a família, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar.” Sua utopia da vida inteira é uma revolução socialista no Brasil. Niemeyer é tão carioca quanto comunista.

NA ESPANHA Projeto do Centro Cultural que ficará pronto em 2010

O número exato de projetos concebidos por ele é desconhecido. Seu neto, o fotógrafo Carlos Eduardo, o Cadu, diz que a lista mais atualizada, mas não completa, contabiliza 600. Ele organiza as exposições sobre os 100 anos do avô, no Brasil e fora dele, e as mais recentes são a de Moscou e a que será inaugurada dia 8 no MAC, em Niterói, chamada Oscar Niemeyer Arquiteto Brasileiro Cidadão. E ele segue produzindo. O ousado centro administrativo do governo de Minas Gerais, previsto para ficar pronto em 2009, terá uma laje de quase 150 metros apoiada em apenas dois pilares. E em Avilés, na Espanha, até 2010, será erguido o Centro Cultural Oscar Niemeyer.

RUBENS CHAVES/AG. ISTOÉ

O MAC, Em Niterói (RJ), de 1996 (à esq.), e o Auditório Ibirapuera (SP), de 2005, último prédio projetado para conjunto do parque

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

Palácio do Itamaraty (DF), de 1960, um dos mais belos edifícios de Brasília, e o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba (PR), de 2002

“A mais forte marca que meu avô deixou em minha vida é a obsessão em buscar uma sociedade mais igualitária”, diz. Mas os cerca de 300 e-mails enviados mensalmente a seu escritório não buscam lições como essa. São jornalistas e arquitetos do mundo inteiro pedindo encontros com o mestre, além de convites e homenagens. A aproximação do centenário fez o assédio chegar “a um nível assombroso”, diz Luiz Otávio Ferreira Barreto Leite, professor universitário que cuida da revisão de textos e ajuda na correspondência.

Niemeyer segue a mesma rotina há anos: sai de seu apartamento, em Ipanema, bem cedo e dedica a parte da manhã, em seu escritório, em Copacabana, a essas “chatices”, como disse Leite. A parte da tarde é somente para a criação e acompanhamento dos projetos. A seu lado, Vera Lúcia Cabrera, que foi sua secretária por 15 anos e com quem se casou há pouco mais de um ano. Niemeyer ficou viúvo em 2004, depois de 76 anos de casamento com Annita Baldo, com quem teve uma filha, Ana Maria, que lhe deu cinco netos, desdobrados em 13 bisnetos e 5 trinetos. Não surpreende que defenda o matrimônio: “Agrada-me muito a vida a dois, a possibilidade de ter sempre ao lado a companheira preferida.” Sobre sua convivência com Vera, resume: “Somos muito felizes.”

Entre os netos, a arquiteta Ana Elisa, ciente do peso de ter a mesma profissão e sobrenome de um gênio. “Não posso me atrever a fazer projeto, vai ser sempre comparado a ele, é assim desde a faculdade. Não seria um Niemeyer… Até porque, Oscar Niemeyer só tem um”, diz ela, que trabalha no desenvolvimento das criações do avô. A genialidade é exemplificada pelo arquiteto Ruy Ohtake: “Ele fez o croqui do Memorial da América Latina, em São Paulo, em uma noite. É rápido, consegue resolver as questões com muita simplicidade. É natural nele.” Ohtake acredita que todos os arquitetos brasileiros sofrem sua influência. Isso vale para grifes estrangeiras também: “As obras que Corbusier (o franco- suíço de quem Niemeyer foi aluno) fez nos últimos dez anos têm uma influência enorme de Oscar. A sede da Renault, na França, à primeira vista, é Oscar Niemeyer.”

Entre as obras que receberam críticas está o Memorial da América Latina, “acusado” de muito árido e sem verde. Segundo o arquiteto José Magalhães Jr., curador da 7ª Bienal Internacional de Arquitetura (BIA), que homenageia este ano Niemeyer, ele responde assim: “Imagine a praça de São Marcos (em Veneza, na Itália) cheia de árvores!” Para Luiz Recaman, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo, em São Carlos, não há o que discutir: “Oscar Niemeyer é o principal nome da arquitetura moderna brasileira e sua obra faz parte da história da arquitetura mundial.” O Arquiteto do Século agradece as homenagens e, humildemente, avisa que pretende apenas seguir a vida, dedicando- se a seus projetos e na companhia de sua mulher, de amigos e familiares. Perto dos 100 anos, ele diz que a grande sabedoria da vida “talvez seja permanecermos modestos, evitarmos encontrar defeitos nas outras pessoas, sermos mais tolerantes”. E manda um lembrete: “A vida é um sopro.”

“A revolução não pode parar"
 

ISTOÉ – Que obra gostaria de ter feito e não fez?
Oscar Niemeyer –
Talvez a mesquita que fiz para Argel (sobre o mar). É um projeto que surpreendeu o presidente (Houari) Boumedienne, a me dizer: “Esta é uma mesquita revolucionária!” – e eu a replicar-lhe: “A revolução não pode parar.”

ISTOÉ – O governador fluminense Sérgio Cabral propõe a legalização do aborto para conter a violência no Rio. O que acha disso?
Niemeyer –
Sem comentário!

ISTOÉ – Acha que Lula poderia ter um terceiro mandato?
Niemeyer –
Acho que o nosso presidente, um homem muito lúcido e inteligente, acredita que a renovação faz parte da democracia.

ISTOÉ – É a favor da CPMF?
Niemeyer –
Sou. Isso vai assegurar a manutenção do Sistema Único de Saúde em nosso país, a possibilidade de as pessoas terem melhores condições de exercer o direito à saúde.

ISTOÉ – Pensa que a liberação das drogas pode diminuir a violência causada pelo tráfico?
Niemeyer –
Sou a favor da descriminalização das drogas.

ISTOÉ – O que faz um homem ter orgulho de sua trajetória?
Niemeyer –
O que eu sinto é menos orgulho do que uma convicção íntima de que me dediquei ao máximo à realização de uma arquitetura diferente, mais leve, capaz de provocar surpresa, e que procurei ser solidário com os amigos e minha família, e manter coerência políticoideológica diante deste mundo marcado por contradições intoleráveis.