Sem insulina

O estudante Renato Fernandes Silveira, 20 anos, é um dos primeiros pacientes do mundo a ficar livre de insulina depois de um transplante de células-tronco. Há quatro anos ele não precisa mais das injeções. A terapia mudou sua vida. "Desisti de ser administrador de empresas. Serei médico, e endocrinologista. Quero ajudar a tratar o diabetes"

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Um time de cientistas brasileiros está desenvolvendo um trabalho de vanguarda para controlar o diabetes, doença que aflige atualmente 240 milhões de pessoas no mundo e está entre as cinco principais causas de mortalidade no planeta. O estudo, liderado pelo imunologista Júlio Voltarelli e pelo endocrinologista Carlos Eduardo Couri, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, faz uso de células-tronco para controlar uma das duas versões da doença, o tipo 1. É uma enfermidade autoimune na qual o sistema de defesa do corpo ataca as células beta pancreáticas do próprio organismo.

Essas células são as produtoras de insulina, o hormônio que abre a porta de todas as células para a entrada da glicose. Sem ela, o açúcar se acumula no sangue, um fenômeno que a longo prazo pode levar a prejuízos graves como a cegueira. Por isso, na sua falta, o paciente é obrigado a recorrer à insulina sintética, fornecida por meio de três ou mais injeções diárias. A novidade é que, dentro de alguns meses, os pesquisadores de Ribeirão Preto revelarão resultados bastante positivos sobre o estado de saúde dos 23 pacientes que participaram do estudo. Em um artigo que está em fase de revisão pelo jornal da Academia Americana de Medicina, o JAMA, uma das publicações científicas mais importantes do mundo, os autores afirmam que o organismo dos participantes está conseguindo recuperar a sua capacidade de produzir insulina.

Até agora, dos 23 participantes, 12 estão vivendo completamente livres de injeções diárias de insulina por períodos que chegam a quatro anos e meio. Além disso, outros oito indivíduos tiveram um resultado transitório, ou seja, conseguiram ficar sem usar a injeção por períodos que variaram entre seis meses e quatro anos. Neste subgrupo de pacientes que ficaram temporariamente independentes, dois conseguiram dar mais uma volta por cima e novamente se desvencilharam das injeções quando passaram a tomar um medicamento oral chamado sitagliptina, atualmente receitado exclusivamente para o tipo 2 da doença. "O tratamento amenizou a doença e por isso essas pessoas controlam as taxas de glicose no sangue só com esse remédio", diz Couri. Em apenas três casos o tratamento não deu certo. Os pesquisadores investigam a razão do fracasso.

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Doces de vez em quando

Três dias depois de começar a tomar insulina, Paula Municelli Rodrigues, 21 anos, estudante de ciências dos alimentos, de Piracicaba (SP), foi informada por uma enfermeira que havia um tratamento para jovens recém-diagnosticados. Ela entrou no estudo com células-tronco e fez o transplante. "Hoje, de vez em quando, dentro dos limites, posso até tomar um sorvete"

Por sua importância, a pesquisa dos brasileiros tem merecido destaque no mesmo jornal americano. "Esse trabalho representa um começo para se obter a reversão e prevenção do diabetes tipo 1", chegou a afirmar o cientista americano Jay Skyler em artigo sobre o tema. O caminho testado pelos brasileiros – e também por outros grupos no mundo – propõe, na verdade, a troca de um sistema imunológico defeituoso, capaz de agredir o próprio corpo. Para isso, usa-se o poder das células-tronco de gerar outras células e órgãos. Basicamente, o que os cientistas fazem é destruir o exército imperfeito, bombardeando-o com drogas quimioterápicas. Semanas depois, injetam célulastronco extraídas do próprio paciente para recriar o sistema imunológico como se fossem peças novinhas. Assim, ele nasce sem o defeito. Desta maneira, cessa-se o ataque às células produtoras de insulina (leia mais no quadro à pág. 72).

No entanto, muitas etapas precisam ser cumpridas antes que a técnica se torne uma opção real de tratamento. Uma das questões, colocadas em artigo publicado também no JAMA na edição de janeiro, pondera que a aplicação das células-tronco é um campo muito novo e que serão necessários estudos para avaliar sua eficácia a longo prazo no mínimo dez anos, antes de estimar que seus vida. Outra limitação da técnica é que, até agora, ela só pode ser experimentada em pessoas com idades entre 12 e 25 anos e que tenham recebido o diagnóstico há menos de seis semanas.

Segundo os pesquisadores, a restrição se justifica porque é necessário que o pâncreas ainda tenha uma reserva de células beta em condições de produzir insulina. Com a progressão da doença, em geral essas células vão sendo destruídas. "Quando há muito poucas, não adianta estancar a agressão ao pâncreas, pois as células que restam não serão suficientes para produzir a quantidade necessária de insulina", explica Couri.

Existem muitas outras linhas de pesquisa em busca de novas armas para controlar o diabetes tipo 1. Uma delas examina o desempenho dos anticorpos monoclonais. São drogas modernas com pontaria certeira que seriam usadas para desativar as células de defesa do organismo que atingem as fábricas de insulina no pâncreas. Atualmente, já são indicadas para tratar alguns tipos de câncer e artrite reumatoide. Também se estudam as origens do problema. Recentemente, pesquisadores finlandeses publicaram um trabalho trazendo informações importantes para o combate e a prevenção da doença.

Eles descobriram a existência de uma série de alterações em gorduras do sangue e aminoácidos, as partículas que formam as proteínas, que precedem o surgimento dos sintomas. Uma delas é a redução dos níveis sanguíneos de triglicerídeos meses antes. Mais uma trincheira de pesquisa é o uso de outro tipo de célulastronco, as mesenquimais, até agora mais estudadas para a regeneração de órgãos.

Os cientistas esperam que transfusões com essas células consigam restaurar as funções do pâncreas fragilizadas pela guerra desfechada pelo sistema imunológico. Outra esperança é que também consertem o próprio sistema de defesa. Atentos a essa possibilidade, os pesquisadores de Ribeirão Preto, novamente de forma pioneira, começaram há seis meses a testar o recurso em pacientes que tiveram diagnóstico há menos de um mês. Duas pessoas participam do estudo e há vagas para outros candidatos.

Esforço de igual magnitude está sendo feito para melhorar o controle do diabetes tipo 2, gênero que representa 90% dos casos. Ele pode aparecer em qualquer fase da vida e avança sobre a população mundial. Está estreitamente associado com a epidemia de obesidade. Por mecanismos muito complexos, o excesso de gordura leva o organismo a desenvolver uma resistência à ação da insulina. Controlada com dieta, exercícios e medicamentos, o que pode ou não incluir o uso das injeções de insulina, esta forma da doença também está no centro das preocupações da medicina.

Hoje, um dos caminhos mais estudados para seu controle são as cirurgias bariátricas, indicadas contra a obesidade mórbida, caracterizada pelo Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 40. Em geral, a maior parte desses obesos tem glicemia alta e, se já não está com diabetes, encontra-se no caminho para manifestar a doença. Por isso, a operação tem sido cada vez mais recomendada a essas pessoas.

"Os procedimentos facilitam a ação da insulina para tirar o açúcar do sangue e também acabam estimulando sua produção", explica o cirurgião Thomaz Szego, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. O que está em estudo agora é a aplicação do método aos diabéticos do tipo 2 que não sofrem com um excesso tão grande de peso. "Já temos alguns casos, mas ainda é cedo para sabermos resultados mais concretos", explica o cirurgião José Carlos Pareja, da Universidade Estadual de Campinas.

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Operação bem-sucedida

Fazia 20 anos que o gerente de contas Ubirajara Olacyr, 40 anos, lutava contra o diabetes tipo 2. Durante um ano e meio, foi inclusive obrigado a tomar uma injeção diária de insulina. Há um mês, submeteu-se a uma cirurgia contra a obesidade que também parece ter efeito sobre o diabetes. Deu certo. "Dois dias depois não precisava mais de insulina", conta

Na área de medicamentos, o alvo do momento são as drogas que atuam sobre o GLP-1, hormônio fabricado pelo intestino, envolvido no estímulo à produção de insulina. O objetivo é aumentar suas concentrações. Mas há cerca de 100 outras medicações em desenvolvimento nos laboratórios. Além disso, existem dezenas de pesquisas para criar equipamentos que facilitem a prevenção da doença. Uma das opções nessa linha é o estudo, por cientistas indianos e americanos, de um teste de saliva que seria capaz de detectar a doença. Os pesquisadores descobriram que várias alterações bioquímicas associadas à enfermidade podem ser detectadas em amostras da substância. Seria mais uma maneira fácil – e indolor – de saber precocemente se o indivíduo é diabético ou não. E quanto mais cedo começar a guerra contra a doença, melhor.

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