25/05/2005 - 10:00
Lygia Fagundes Telles caminha pelos corredores do Hotel Glória, onde costuma ficar hospedada quando está no Rio de Janeiro, atendendo aos convites dos espelhos. Vaidosa e ciente de sua beleza, parece gostar do reflexo enquanto ajeita um fio de cabelo desairoso. A entrevista é no bar e Lygia, com aspecto de garota sapeca, sugere: “Vamos tomar uma cervejinha?” Mediante a anuência, diz ao garçom: “Uma Bohemia gelada para ela e para mim, como vocês dizem, uma quente.” Uma leve sinusite a impede de tomar gelado, mas não consegue privá-la do prazer de saborear uma bebida preferida, que pode ser vinho ou cerveja. Lygia está feliz. Acaba de ganhar o Prêmio Camões, o mais importante galardão literário da língua portuguesa, que será entregue em Lisboa, dia 10 de junho. Um justo reconhecimento a uma das maiores escritoras brasileiras, cuja obra equilibra leveza e comprometimento com a condição humana, já condecorada com quatro prêmios Jabuti, entre outros.
Seu livro mais recente é a antologia Meus contos esquecidos (Rocco), com histórias que estavam, como ela mesma diz, “na penumbra” há muito tempo. Nesta entrevista, Lygia fala de sua próxima obra, um livro de crônicas, e do próximo romance, que será lançado no ano que vem. Fala também de solidão, da “paquera” de Vinicius de Moraes, dos amigos ilustres como Rubem Fonseca e do desgosto de falar de idade. Em homenagem à contista e romancista, aqui não se contará o tempo. Lygia tem a idade que aparenta. E ponto final.
Não! Fui para o Rio visitar alguns amigos e participar da Bienal Internacional do Livro. De repente, estava no apartamento do hotel, posta em sossego qual Inês (referência a Inês de Castro, de Luís de Camões), e recebo um telefonema do Pedro Corrêa do Lago, presidente da Biblioteca Nacional, falando do prêmio. Eu disse: “Que prêmio? Não estou sabendo de nada!” Tempos atrás, eu achei que ia ganhar e não ganhei. Concluo, então, que prêmio tem que amadurecer como um fruto e na hora certa você colhe.
São 100 mil euros. Dá para comprar um apartamento, não dá para ficar rico. O Rubem Fonseca (escritor) disse: “Agora você tem um dote! Vamos casar!” Foi divertido. E a síntese é que é preciso humor na vida, como disse Santo Agostinho, “a arte de viver em tempos de catástrofe”. Isso é muito bonito. Estamos vivendo em tempo de catástrofe, as coisas estão terríveis, o que está acontecendo no mundo é algo verdadeiramente terrível. O Bush (George Bush) foi lá espetar um vespeiro. Agora não pára mais, aquilo não tem mais como parar.
O Rubem e eu temos uma amizade tão linda. Ele gosta da minha obra, eu gosto demais dele, do trabalho dele. Somos amigos. Amizade, coisa que já não existe – algo maravilhoso. Sabe, minha geração é do tempo dos dinossauros, da pedra lascada. As moças eram muito reprimidas. Eu fiz o curso de direito e tinha de trabalhar para pagar meus estudos na faculdade. Foi uma época muito difícil. Então, tive amigos importantes, como o Carlos Drummond de Andrade, o Manuel Bandeira e o Érico Veríssimo. Eles foram deslumbrantes na minha formação. Me aconselharam. Alimentaram o meu sonho dentro da vocação que me chamou.
Ele dizia: “Lyginha, vamos casar!” Eu dizia: “Você já é casado!” Ele falava: “Ah, isso é fácil, eu desmancho.`” E eu encerrava: “Não, nenê, eu quero véu e grinalda.” Ele ria. Mamãe, minha amada mãe, enfiou no meu ouvido que o tesouro de uma moça pobre era a virgindade!
Não, não me arrependo. Eu tenho uma sobrinha muito engraçada
que já disse: “Você não é muito agitada.” Tem mulheres que ficam tão
aflitas. Eu nunca fui assim. Sou uma brasileira tranqüila. Aliás, sugiro: bote
esse título na matéria. É isso que eu sou.
Quando me formei, amigos me convidaram para abrir um escritório. Falências! Concordatas! Divórcios! A idéia era ficarmos ricos! Mas eu tinha uma vocação literária. Bom, o resto todos sabem: eu preferi seguir minha vocação, realizar meu sonho. Eles ficaram biliardários. E eu, pobre.
O apartamento onde eu vivo em São Paulo. Não quero uma Ferrari…
Mas eu nasci num país de Terceiro Mundo, cheio de miséria e analfabetismo. Nasci aqui, moro aqui, aqui vou morrer, paciência. Esse tema era motivo de brincadeira entre mim e a Hilda Hilst (escritora, já falecida). Ela dizia: “Nós escrevemos maravilhosamente, mas não acontece nada. Dinheiro zero!” Me telefonava às duas da manhã só para lembrar: “Lyginha, a alma é imortal.” A gente desligava e eu não conseguia dormir mais. A alma é imortal, estou de acordo. Sou uma espiritualista.
Vou publicar, este ano, um livro de crônicas e estou bolando um romance. A personagem está sentada aqui no meu ombro, exigindo o seu tempo, a presença. Lá vem ela insistir comigo: “Vai, escreve! Eu tenho coisas interessantíssimas para dizer.” Me entreguei a ela. Porque as personagens são como nós mesmos, exigem mais tempo de vida, querem viver, exatamente como nós. Essa viveu pouco num conto, que prefiro não dizer o nome. É uma atriz, mãe de um rapaz que é louco e de uma jovem que morreu. Em 2006 possivelmente teremos um novo livro.
Ano passado meu computador engoliu um conto tão bonito, fiquei com ódio, dei um tapa nele. “Devolva o meu conto!”, eu dizia. Mandei consertar, mas ele voltou com o cérebro mudado. Computador tem memória, não é? Mas para mim, chega! Voltei à minha máquina Olivetti, que comprei em Roma e está caindo aos pedaços. Mas nunca vai engolir uma obra minha. Pode ser que no futuro eu compre outro computador, mas vou me aconselhar com o caríssimo Rubem Fonseca, que entende do assunto.
Tive algumas cobranças de leitores, pessoalmente ou através de cartas. Recebi pitos, alguns enérgicos. O primeiro conto, Herbarium, é particularmente importante para mim porque saiu numa antologia no México, denominada Os mais belos contos do século. Essas coisas me comovem.
Mistura sim. Em Meus contos esquecidos tem um que se chama Senhor diretor, com uma personagem que existiu na minha vida, a Tia Mariquinha, irmã do meu avô. Ela tinha horror à vulgaridade. Eu também.
Na tevê, principalmente. Não há mais amor, só vulgaridade. As mulheres estão se vulgarizando demais, será que elas não percebem? Não todas, claro, há um outro lado com mulheres trabalhando nos escritórios, nas fábricas, nas universidades, fazendo a diferença. Como disse Norberto Bobbio (filósofo italiano), a mais importante revolução do século XX é a da mulher. Mas não é a fútil, de queimar sutiã, entrar na promiscuidade, cheirar crack, lutar com os homens. A revolução de que Bobbio fala requer menos agressões. É uma revolução mais profunda. Os homens estão com medo de mulher porque elas estão por demais adoidadas. Não é por aí. “Calma com o andor que o santo é de barro.”
Não, a solidão não é boa. A solidão é repugnante. Mas há a música, gosto de ouvir meus clássicos. E a poesia. Tenho o meu filho querido, o Goffredo, que não mora comigo, tem a vida dele. É cineasta e fez um documentário lindo, em parceria com a Paloma Rocha, sobre minha posse na ABL, em 1987. Chama Narrarte e mistura a austeridade do fardão com uma porta-estandarte rodopiando, algo quente como o samba. Eu falei: “Meu filho, mas pode ficar irônico.” Ele explicou que era o equilíbrio necessário. E ficou bonito mesmo. O Austregésilo de Athayde, então presidente da ABL, disse: “É muito irreverente, mas é tão bom!”
Não! É melhor ficar sozinha. Fiquei com meus gatos, que já morreram. Em casamento, eu acho que a sabedoria está em não morar na mesma casa. Um está numa casinha, o outro está pertinho. Aí um liga para o outro: querido, vamos tomar um chope? Querida, vamos assistir ao filme Os últimos dias de Hitler? Eles dão as mãos e saem. Eu tive dois casamentos. O primeiro, com o meu professor da faculdade, Goffredo da Silva Telles Jr. (jurista), pai do meu filho Goffredo Telles Neto. Divorciei, casei outra vez com o Paulo Emílio Salles Gomes (ensaísta e professor), que morreu em 1977. Os dois me apoiaram muito, principalmente o Paulo Emílio, que também era escritor e foi criador da Cinemateca Brasileira. Quando fiquei só, fiquei quieta ouvindo Mozart, Bach… E tenho os meus livros.
Mas não tem mar, hein? Quando eu venho ao Rio, me entrego ao mar. Fico olhando como se ele fosse meu amante. Tenho paixão pelo mar. Talvez minha origem seja marítima. Acordo de madrugada, às vezes, me debruço na janela e fico olhando. Em São Paulo, minha rotina é simples. Tenho pouquíssimos amigos, não faço essa vida social cansativa, escolho muito os lugares aonde vou. Leio muito. Gosto de ouvir música, prefiro o cinema ao teatro. Vida solitária. Viajo muito. Embora não goste de avião, estou sempre metida num. Até para a China eu já fui. Tenho ódio de avião, não é o meu elemento. Não sou passarinho nem nada!
Votei no Lula. Gosto muito do Palocci. É aquela história: Terceiro Mundo, país de miseráveis e de analfabetos. Mas é preciso não perder a esperança, o sonho.
Eu nunca fui muito contente comigo mesma. Eu tenho vocação para a alegria, mas é uma vocação mal cumprida (risos).
É um brasileiro que está fazendo
sucesso pelo mundo. Se você gosta dele ou não, isso não tem importância. Está sendo lido pelo mundo. Eu respeito. É um brasileiro que está transpondo as fronteiras, isso é bom. Não está tirando meus leitores. Não está tirando leitores
de Machado de Assis.
Às vezes, pode ser uma forma de agressão. Mas fazer o quê? Para não envelhecer, é preciso morrer jovem.
Não, nunca fiz. A cara é esta mesma. Creio que, às vezes, é preciso usar a máscara… Estou gracejando; é preciso um pouco de humor, não? Já disse o poeta, CDA, que as coisas sem ênfase ficam assim, tristes.