Como se transpostas de uma imponente tela do pintor belga Paul Delvaux, um coro de bacantes – as seguidoras carnívoras de Dioniso – e o deus grego do teatro e do vinho em pessoa pairam sobre a dolorosa trama palaciana de Antígona, maravilhoso espetáculo de Antunes Filho e o seu Centro de Pesquisas Teatrais (CPT), em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo. Mas o coro presente na tragédia de Sófocles – que inspirou o filósofo alemão Hegel na reflexão sobre o conflito entre o indivíduo e o Estado – não é formado pelos anciãos da cidade de Tebas, perguntaria um estudioso do assunto? “Sim, mas as bacantes e Dioniso, que é o patrono da cidade, estão no texto, só que acobertados. O que fiz foi materializá-los em cena”, afirma Antunes. Sentado na sala de ensaios do CPT, espaço mítico de onde saem periodicamente atores fabulosos – Beth Coelho, Luís Mello e agora Juliana Galdino, em estado de graça como a protagonista da peça –, Antunes, 74 anos, parece não querer “explicar” seu novo trabalho – isso levaria a uma leitura única do “compacto da história humana” a que chegou. Sereno e sem a ansiedade comum às estréias, ele não precisa defender ou provar nada. Começa a falar de Platão, a propósito de ter feito um espetáculo “pré-sofoclático” – piada cifrada para leitores de filosofia –, e acaba a digressão de forma bem-humorada na ancestralidade das risonhas hienas. “Sabia que o homem teve que lutar muito com elas no tempo das cavernas?”

Homem de muitas indagações, a pergunta fundamental de Antunes em Antígona vai mais fundo: pertence àquelas que, segundo ele, rasgam a alma humana. “Será que o senso de liberdade supera o instinto de sobrevivência?”, reflete, citando – sem aprovar ou condenar – o exemplo dos homens-bombas e de outros mártires desta época sombria. São apenas pistas, pois Antunes, como Umberto Eco, sabe que uma obra é tanto mais rica quanto mais conotações provoca. E assim, saltando de assunto em assunto, ele se transporta para a infância e para as missas com a mãe na Igreja de São Francisco, quando se impressionava com a quebra do silêncio pela entrada progressiva dos fiéis. “Silêncio é música”, afirma. Em Antígona – que mostra a condenação da heroína a morrer presa numa caverna por ter desobedecido o édito do rei Creonte, proibindo o enterro de seu irmão Polinices – existem duas cenas silenciosas de arrepiar.

Cemitério – A primeira mostra a
entrada de Creonte, um belíssimo e fantasmagórico quadro de corte,
cujo “congelamento” é cortado por
uma sirene de ataque áereo. O ambiente sufocante, marcado pelo cenário imemorial de J.C.Serroni, um misto de cemitério e ágora grega com tonalidades do pintor alemão Ansel Kiefer, só
enfatiza o efeito. “Gosto muito de sirenes”, comenta Antunes, assumindo ares do profeta e sacerdote Tirésias. “Quer dizer: atenção cidade, homens! Cuidado homem, cuidado!” A outra passagem muda mostra Antígona, rosto da Joana D’Arc de Carl Dreyer, já condenada e amarrada numa camisa de força, sendo levada numa cadeira de rodas até a boca do palco. O tecido pesado risca o piso e deixa seu rastro de dor profunda, coroado com uma das mais belas falas do teatro, em todos os tempos: “Sem que alguém cante o himeneu por mim, sem que na alcova nupcial me acolha um hino, caso-me com o negro inferno.”

É preciso saber do silêncio e da música das palavras para que falas desse tipo entrem no ouvido das pessoas feito uma divina flauta de Pã e o torne pequeno como a orelha de Ariadne, a amada de Dioniso. Por mais de dez anos Antunes se recusou a encenar os textos gregos. Dizia que o português dito por atores despreparados soava pedregoso. Desenvolveu assim um método para que seus pupilos reaprendessem a declamar usando a ressonância e não o peito. Dito desta forma, pode parecer muito técnico. Melhor então é ver o espetáculo e comprovar como o elenco modula as frases e chega à emoção calculada e controlada sem precisar de gritos e esgares. A depuração acabou levando a uma redução do tempo de seus espetáculos. Antígona dura apenas 50 minutos. “Não cortei uma metáfora do meu amigo Sófocles, nada”, afirma Antunes. Normalmente uma adaptação da peça consome entre 1h30 e 2h. “Dura esse tempo porque o ator fica tropeçando no texto. Se você o fala com a voz do peito, tem que respirar a cada três palavras.” O recado serve também para os espetáculos que, mesmo não sendo baseados nos clássicos gregos, chegam a cinco, seis horas. A lista inclui Os sete afluentes do rio Ota, de Monique Gardenberg, e as caudalosas peças de Zé Celso e o Grupo Oficina, em cartaz com Os sertões – a luta. “Quando o Bob Wilson fez isso, na década de 70, estava inovando o teatro. Hoje é démodé. Tem que falar fundo e de maneira rápida.” Não é por acaso que Antunes e Zé Celso resumem hoje as duas grandes escolas do teatro brasileiro.