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À ESPERA DA LIBERDADE Na tarde da quartafeira 28,
Battisti recebe a reportagem de ISTOÉ na sala
da gerência de operações especiais do
presídio da Papuda.

A camiseta amarela e a calça jeans não poderiam estar mais surradas. Dificilmente também poderiam estar mais limpas. Mesmo sob forte escolta policial e algemado, ao descer da parte de trás do camburão, o italiano Cesare Battisti passava uma imagem de dignidade. Na tarde da quartafeira 28, ele foi retirado da cela que divide com um austríaco preso por crimes fiscais para ser entrevistado por ISTOÉ, na penitenciária da Papuda, em Brasília. Circulou pouco mais de um quilômetro dentro do complexo, sede de uma antiga fazenda, até ser instalado numa sala da gerência de operações especiais. Do lado de fora, a segurança envolvia homens com metralhadoras. Dentro da sala, dois agentes também armados mantiveram-se quase em posição de sentido por 1h40. Eles só se agitaram aos 50 minutos da entrevista, quando um dos advogados de Battisti, Fabio Antinoro, colocou na mesinha que separava o preso da repórter dois copos de água – de vidro. Assim que percebeu o movimento dos agentes, o próprio Antinoro rapidamente trocou o copo de Battisti por um outro, de plástico. Sem nenhum outro comentário ou expressão de desagrado, o italiano agradeceu.

Cesare Battisti, um homem de 54 anos com aparência frágil, é o pivô da mais ruidosa crise diplomática enfrentada pelo Brasil nos últimos anos. Será ele um assassino frio, cruel, responsável pelas mortes de quatro pessoas durante os anos de chumbo da Itália? Ou apenas um ex-guerrilheiro arrependido, que não executou nem participou do planejamento dos crimes que lhe são atribuídos? Culpado ou inocente, Battisti se transformou no protagonista de um conflito inédito e explosivo entre dois países amigos – Brasil e Itália – e também de uma trama internacional, que envolve até o serviço secreto francês e a primeiradama daquele país, a cantora italiana Carla Bruni. Em meio ao turbilhão de versões, desmentidos e insinuações, Battisti disse à ISTOÉ, na quarta-feira 28: "Nunca matei ninguém e o refúgio concedido pelo Brasil foi um ato de coragem e humanidade do ministro Tarso Genro."

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UM LOBBY BINACIONAL
Viagem de Sarkozy e Carla Bruni despertou a
suspeita de que eles teriam intercedido em
favor de Battisti. Do outro lado, o embaixador
Michele Valensise não foi atendido pelo ministro
Tarso no pedido de extradição e foi chamado
de volta ao seu país.

Com aparência serena – mesclada por momentos de ansiedade contida -, Battisti não se exaltou em nenhum momento. Chegou a rir quando lembrado que, três décadas atrás, usava um documento falso com o sobrenome Ferrari. "Eu já tinha me esquecido", disse. "Era Joseph Ferrari." Quanto à vida na Papuda, conta que tem boa convivência com os 50 presos de sua unidade – um deles faz graciosamente o corte de seus cabelos. Em vez de participar das atividades laborais oferecidas pela Papuda, Battisti prefere continuar sua própria obra literária e passa a maior parte do tempo tentando escrever. Conta que já recebeu "centenas" de cartas, de todo o mundo, de pessoas oferecendo-lhe apoio.

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GRITARIA NA ITÁLIA
Manifestante se acorrenta diante da embaixada
brasileira em Roma, em protesto contra a decisão
do governo de conceder status de
refugiado ao ex-terrorista.

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Ex-militante do grupo Proletários Armados pelo Comunismo, uma facção de extrema esquerda italiana, Battisti chegou a ser preso na Itália, de onde conseguiu fugir em 1981. Escondeu-se na França, depois no México e se tornou escritor. Seu principal livro, chamado Minha fuga eterna, narra as peripécias de um fugitivo ao redor do mundo. Anos mais tarde, ele obteve status de refugiado político na França, amparado pela doutrina Mitterrand, que protegia ex-guerrilheiros, dispostos a renunciar à luta armada. Em Paris, Battisti viveu durante 11 anos, casou-se e teve duas filhas. Foi só em 2006 que ele se viu obrigado a reiniciar sua fuga, quando o governo de Jacques Chirac reviu a doutrina Mitterrand. Battisti desembarcou no Aeroporto de Fortaleza, no Ceará, e depois desceu para o Rio de Janeiro. Lá, alugou uma quitinete em Copacabana e continuou escrevendo seus romances policiais até que, mais um vez, acabou se tornando personagem de uma trama do gênero. Detido em 2007, foi transferido para o presídio da Papuda, no Distrito Federal. Desde então, vinha aguardando o julgamento do seu pedido de extradição. Condenado à prisão perpétua, Battisti temia ser assassinado na Itália. E foi por isso que ele entrou com pedido de refúgio político, cuja decisão, tomada de forma unilateral pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, causou um terremoto diplomático entre Brasil e Itália.

Em Roma, manifestantes ligados a organizações que reúnem vítimas do terrorismo, protestaram diante da suntuosa embaixada brasileira. Senadores mais exaltados sugeriram que os italianos boicotassem produtos brasileiros e cancelassem suas viagens às praias do Nordeste. A crise atingiu o ápice na terça-feira 27, quando a Itália chamou de volta seu embaixador em Brasília, Michele Valensise, para reforçar o protesto contra a decisão do governo brasileiro. Na diplomacia, a convocação do embaixador é o último passo de um governo antes do rompimento definitivo das relações diplomáticas. Nem a carta que o presidente Lula enviou na sexta-feira 23 ao presidente italiano, Giorgio Napolitano, justificando a decisão do governo em dar refúgio a Battisti, serviu para amenizar a situação. Segundo Lula, a concessão do refúgio foi um ato soberano do Brasil, que deve ser respeitado. "Trata-se de um caso encerrado", disse o porta-voz da Presidência, Marcelo Baumbach.

Há, dentro do governo, quem se lembre da recusa da Itália em enviar de volta ao Brasil o banqueiro Salvatore Cacciola, que estava condenado a mais de dez anos de prisão. Mas a comparação não faz muito sentido, porque o ex-dono do Marka, de ascendência italiana, tem dupla cidadania e a Itália seria legalmente proibida de extraditá-lo. Há também uma tese conspiratória circulando em Roma: a de que os italianos colaboraram com a prisão de Cacciola, avisando as autoridades do Brasil e da Interpol sobre seu passeio em Mônaco, onde ele foi capturado, e agora esperavam a reciprocidade. Em vão.

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CAPTURA NO BRASIL
Depois de um aviso do serviço secreto francês,
Cesare Battisti fugiu para Fortaleza e depois
desceu para o Rio de Janeiro, onde foi preso em 2007,
antes de ser transferido para a Penitenciária
da Papuda, em Brasília.

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O caso Battisti é surpreendente não apenas pelas reações apaixonadas que despertou, como também pela dimensão dos personagens que gravitam em torno dele. A começar pela bela e charmosa primeira-dama francesa, Carla Bruni. No fim do ano passado, ela e seu marido Nicolas Sarkozy, presidente da França, decidiram passar as festas de Ano-Novo no Brasil. Os dois estiveram com o presidente Lula no Rio de Janeiro e despertaram a suspeita de que teriam intercedido em favor de Battisti. Carla e sua irmã, a atriz Valeria Bruni-Tedeschi, defendem publicamente os ex-terroristas italianos que vivem na França. Sarkozy, por sua vez, seria movido por um misto de remorso e conveniência política. Ele venceu as eleições de 2007, na França, acusando sua adversária, Ségolène Royal, de proteger terroristas. Mas depois disso, Sarkozy compôs seu governo com a esquerda francesa. Em outubro do ano passado, por exemplo, ele vetou a extradição de Marina Petrella, ex-militante das Brigadas Vermelhas. A suspeita de que o primeiro-casal francês fez lobby por Battisti foi tão forte que Carla teve de convocar uma entrevista coletiva em Paris, no início da semana. "Não tratei desse tema com o presidente Lula", disse ela. "Sou contra o terrorismo e nunca defendi Cesare Battisti." Embora o governo brasileiro considere o caso encerrado, os italianos não pensam da mesma maneira.

Nesta semana, desembarca no Brasil o chanceler Franco Fratini, com a missão de convencer o Supremo Tribunal Federal a rever o caso. No STF, o único ministro disposto a mexer nesse vespeiro é o presidente da corte, Gilmar Mendes, mas ele deve ser voto vencido. Os ministros do Supremo Tribunal Federal não deverão questionar a decisão de Tarso Genro. "A lei proíbe a extradição quando já reconhecido o refúgio", disse à ISTOÉ o ministro Marco Aurélio Mello. Há um precedente igual ao de Battisti na corte. Trata-se do processo do padre colombiano Olivério Medina, que foi acusado de pertencer às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Em 2007, o Conselho Nacional de Refugiados concedeu o benefício a Olivério e o STF, numa goleada de 9 a 1, entendeu que não cabia extradição. "Teremos praticamente o mesmo resultado", prevê Marco Aurélio. O procurador- geral da República, Antonio Fernando de Souza, também enviou na segunda-feira 26 um parecer ao STF defendendo a extinção do processo de extradição do italiano. Com isso, Battisti poderia ser colocado em liberdade. "Ele já deveria ter sido solto", disse à ISTOÉ seu advogado, o petista Luiz Eduardo Greenhalgh.

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Sua maior felicidade na Papuda foi receber a filha mais velha, Valentina, 24 anos, na cela, em agosto do ano passado. "Foi maravilhoso", conta. "Da outra vez que ela veio, eu estava em outra prisão e ficamos separados pelo vidro do parlatório." Nos planos para o futuro próximo – em que ele se imagina livre, com a família reunida, no Brasil – Battisti já sonhou até com as perspectivas de atuação de Valentina. "O Brasil tem boas oportunidades na área dela, de biogenética." Enquanto espera os novos tempos, Battisti enfrenta a realidade tomando, com indicação médica, o antidepressivo Zoloft. Por garantia, o advogado Antinoro entrega-lhe um comprido por vez, diariamente. Lembrando que a pressão das últimas semanas veio em doses cavalares, Battisti conta que nos últimos dias não tem conseguido escrever. E garante: "Tudo que vou dizer está documentado, pode ser provado."