Um um jogo de RPG (Role Playing
Game), febre que só faz crescer
entre os adolescentes, o mestre decide o destino dos demais jogadores. Na
partida entre Thiago, Mayderson e Ronald, três jovens do pacato balneário de Guarapari, no Espírito Santo, o mestre decretou a morte de três personagens. Na quarta-feira 4, a polícia encontrou em uma modesta casa do Morro da Praia os corpos do estudante Thiago Andrade Guedes, 21 anos, e de seus pais, o aposentado Douglas Augusto Guedes, 54, e a corretora de imóveis Heloisa Andrade Guedes, 42 anos. Na sala que deveria ser apenas o cenário de um jogo juvenil, a ficção virou tragédia real. O “mestre” do assassinato foi Ronald Ribeiro Rodrigues, 22, acompanhado pelo amigo Mayderson de Vargas Mendes, um ano mais novo. “O jogo entrou em minha cabeça de uma forma muito maligna. Se tornou muito real e cada um virou um personagem”, disse Ronald a ISTOÉ, na delegacia de Guarapari, onde está preso com Mayderson. Além de matar, eles roubaram dinheiro e objetos das vítimas. A polícia não descarta a hipótese de o RPG ter sido apenas um pretexto para os homicídios, mas a principal linha de investigação aponta mesmo para uma mistura macabra entre fantasia e realidade.

Os corpos, em decomposição, foram encontrados pela polícia oito dias depois do crime. Os três foram sedados e mortos com tiros na cabeça. A conexão com o RPG foi levantada pelo chaveiro que abriu a casa após a perícia, um ex-adepto do jogo. Chamou-lhe a atenção um pote com a inscrição “água do rio Jordão”, além de várias revistas ensangüentadas, uma vasta biblioteca de RPG no armário de Thiago e um dado em forma de pirâmide. Um bilhete e a agenda telefônica de Thiago levaram a polícia a prender os acusados.

A caminho da delegacia, segundo o delegado
Alexandre Lincoln Capella, Mayderson disse
apenas: “Tinha que ser… era o jogo…” Na entrevista a ISTOÉ, os acusados sustentaram que a motivação foi o RPG, mas apresentaram versões diferentes para a morte do jovem. Segundo Ronald, Thiago aceitou passivamente o ritual, mas Mayderson disse que ele só se deixou amarrar porque estava sob a mira de uma arma. Ronald já era amigo de Mayderson quando conheceu Thiago, na partida iniciada semanas antes do crime. No enredo do jogo, o “mestre” Ronald interpretava um traficante, Mayderson era seu advogado e, segundo o delegado, representava também o diabo. Thiago era um policial, marcado para morrer junto com a família. A alucinação chegou a ponto de Mayderson e Ronald continuarem jogando no meio dos corpos para decidir quais “prêmios” levariam da casa por terem cumprido a tarefa, segundo contaram ao delegado. Saíram com vários objetos e R$ 4.260 que sacaram da poupança de Thiago.

Com os dois na cadeia, orientados pelos advogados, os depoimentos começaram a mudar e a confundir a polícia. Mayderson afirma que o casal entrou no clima do jogo e se deixou amarrar, mas logo em seguida o pai se soltou, tentou reagir e chegou a dar um soco em Ronald. Douglas e Heloisa cederam novamente ao ver o “mestre” armado com um revólver Taurus, calibre 32. A mãe, na versão de Mayderson, acalmou o marido: “É sério, amor, vamos colaborar.” Quando Thiago chegou em casa, teria encontrado os pais amarrados e se deixado amarrar, além de entregar o cartão bancário e a senha a Ronald. Mayderson contou que não queria atender à ordem do mestre para sacar o dinheiro e comprar o calmante Bromazepan, que seria dado às vítimas, mas foi convencido: “É melhor eles dormirem do que serem mortos, eles só vão dormir”, teria dito Ronald.

Plano na cabeça – Fora da casa, Mayderson diz ter temido a própria
morte, com os pensamentos oscilando entre a vida real e a ficção. Essa foi, segundo ele, a pior parte da história. “Não sei se Ronald planejou as mortes e chegou com essa intenção ou se
foi com outro objetivo e mudou”, disse. “O mestre pode modificar tudo, mas sempre tem um plano na cabeça”, acrescentou. Já Ronald afirma
que foi Mayderson quem apareceu com a arma, mas admite ter decidido pela morte. A família assassinada era de Itabira (MG) e estava em Guarapari havia nove anos, quando Douglas se aposentou da Vale do Rio Doce. Ele cultivava orquídeas. Thiago estudava física na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Tinha média acima da dos colegas.

Mayderson, que conheceu Thiago há três anos, passou no vestibular para informática mas não cursou. Magro, alto e abatido por profundas olheiras, se diz um voraz leitor de Kafka e Dostoievski. Em seu depoimento, detalhou que a arma, usada por Ronald, o “mestre”, foi envolta em um pano azul e um travesseiro para reduzir o barulho, também amenizado pela chuva. Os pais de Thiago levaram um tiro na cabeça e o estudante, dois. Mayderson diz ter ouvido os tiros de outro cômodo. “O Thiago não queria morrer não”, teria dito o “mestre”.

Ronald também concluiu o ensino médio e trabalhava em uma vidraçaria. Na entrevista a ISTOÉ, mostrou-se confuso, embora aparentasse tranqüilidade. Disse que os três jogaram RPG observados pelos pais de Thiago. Assumiu ter matado Douglas, mas atribuiu a Mayderson a morte de Thiago e disse não saber quem teria atirado na mãe. Tenta jogar a culpa no “mestre” que encarnou. “Foi o personagem quem matou. Na hora eu estava muito ligado no jogo, não senti nada”, admitiu, com frieza. A mãe de Ronald, Lucimara Ribeiro Rodrigues, dona-de-casa de 40 anos, chorando muito, disse nunca ter ouvido falar em RPG. Ela mora em um bairro periférico com a mulher de Ronald, Daiana, 17 anos, e o neto Robert, dois. Confirmou que Ronald tomava medicamento para o sistema nervoso. “Ele sofre de disritmia, mas já tem um tempo que não toma remédio porque achou que estava bom.”

Para os amigos, é impossível aceitar que Thiago tenha se oferecido ao sacrifício. Wesley Dal’Col, 23 anos, seu colega e um dos melhores amigos, define a história de RPG como uma farsa e considera um “atentado à inteligência” admitir que Thiago concordaria em morrer pelo jogo. “Ele era muito sociável, estava sempre rindo e fazendo piada. Tirava notas altas”, descreve. No seu entender, o amigo entrou na história “de gaiato”. Também praticante de RPG, Wesley garante que quem joga tem consciência do que é ou não realidade. “Não existe essa de prêmio no jogo”, acrescentou. O professor Sydney Francisco Machado concorda: “Thiago era uma pessoa interessada em investir em si mesmo. Seria uma incoerência entrar em um jogo admitindo a própria morte.” O delegado, que classifica o RPG como “satânico”, pensa diferente: “O jogo foi traçado para ir até o final. Thiago aceitou e tudo aconteceu.”