ALEXANDRE SANT’ANNA/AG. ISTOÉ

SINTONIA Para Zuenir, ninguém explica o vento de liberdade que soprou ao mesmo tempo na França, no Brasil, nos EUA e na Tchecoslováquia

Vinte anos depois de lançar 1968 – o ano que não terminou, Zuenir Ventura, 76 anos, dá os últimos retoques em 1968 – terminou ou não terminou?. Em busca da resposta, o jornalista entrevistou personagens da história inaugurada pela rebeldia mundial. O que mais intriga Zuenir é a coincidência, naquela época, de atos e atitudes em um mundo sem internet, compartimentado pelos muros da guerra fria. “Ao mesmo tempo os jovens cantavam a mesma música, deixavam o cabelo crescer e mudavam o comportamento sexual”, recorda o escritor.

ISTOÉ – Terminou ou não terminou?
Zuenir Ventura –
Não cheguei a uma conclusão, mas 1968 provoca tanta polêmica e divergência que parece estar vivo. Não é visto como efeméride. Muita gente que participou daquilo tudo foi para o poder, como José Dirceu, José Serra, José Genoino, só para ficar na política. Fernando Henrique e Lula reivindicam ter levado para o governo mais pessoas de 68.

ISTOÉ – Como seria o Brasil hoje se a repressão não tivesse vencido em 68?
Zuenir –
Seria difícil outro desfecho porque a linha dura já tinha vencido a disputa interna e o AI-5 só coroou a vitória. Tudo foi pretexto para endurecer. Mas eu diria que, se a juventude tivesse vencido, não seria uma catástrofe. Muitas das melhores cabeças do Brasil passaram os melhores anos de sua vida no exílio. Esse pessoal perdeu na política, mas ganhou no comportamento, como as mulheres, os gays, os ambientalistas, as minorias, a juventude. Tudo isso germinou ou ganhou importância ali. Se hoje há minissaia e homens com brinco é porque a destruição dos tabus começou em 68 e ainda dura. A liberdade sexual sobreviveu até à Aids. Não se valoriza mais a virgindade como tabu.

ISTOÉ – A direita acabou vencendo?
Zuenir –
Há uma tendência mundial à direitização, com exceção da América Latina. O Nicolas Sarkozy (presidente da França) diz que quer acabar com 1968. Nos anos 60 se dizia que o mundo caminhava para o socialismo, mas a tendência atual é para a direita ou centro. Não é à toa que Lula faz isso. Ele não tem nada de bobo. O Brasil é conservador, conciliador, sempre temeu ruptura.

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ISTOÉ – Por isso a geração 68 não venceu?
Zuenir –
O momento mais bonito de 68, e também o canto do cisne, que marca o início do descenso, foi a Passeata dos 100 Mil. A classe média aderiu, mas, a partir daí, muitos líderes começam a radicalizar. Era o que os militares queriam. Na passeata, um grupo gritava que “só o povo organizado derruba a ditadura” e outro, “só o povo armado derruba a ditadura”. O momento mais insano foi o Congresso de Ibiúna, com 920 pessoas presas. Foi um gesto de insensatez absoluta, que acabou no confronto.

ISTOÉ – Qual foi o maior dos legados culturais?
Zuenir –
Aquela geração continua atuante e influente. Chico, Caetano, Bethânia, Milton, Gil. É uma geração matriz, com prestígio. A tropicália é nosso último movimento cultural importante, enquanto pessoas na mesma direção, com mesmas idéias, padrões, valores estéticos. Não tivemos mais nada parecido. O principal da tropicália foi acabar com o populismo, o engajamento cultural com viés demagógico, falando em nome da nacionalidade, dos valores pátrios. Rompe com a visão do povo ingênuo que precisa de ajuda. A peça mais tropicalista foi Roda viva, que o Zé Celso Martinez Correa transformou em teatro de agressão. Ele espremia um fígado e espirrava sangue na platéia, achava que deveria agredir o público, não agradá-lo. O tropicalismo deu liberdade à cultura.

ISTOÉ – Paris e Praga influenciaram o 1968 brasileiro?
Zuenir –
Em março, eu trabalhava na revista Visão, que era perto do Calabouço. Quando ouvimos o tiro que matou Edson Luiz, descemos e acompanhamos a multidão com o corpo até a Cinelândia. Em maio, eu estava em Paris, quando estourou a coisa lá. Estavam o Zé Celso, o Leon Hirszman, o Fernando Henrique. Quando fui preso no Brasil, em dezembro, o interrogatório foi um diálogo de malucos. O coronel dizia: “É muita coincidência, senhor Zuenir.” E eu: “É coincidência mesmo, coronel.” Ele: “Mas é muita, né?” E eu: “É, muita.” Fiquei três meses preso. Eles não percebiam que, aqui, aconteceu antes. Não havia essa influência direta, as coisas demoravam a chegar. Ninguém sabia quem era Marcuse ou Daniel Cohn-Bendit. Apesar da paranóia da guerra fria, houve um vento de liberdade e renascimento na França, Tchecoslováquia, Polônia, Japão e até nos Estados Unidos, uma sintonia planetária que não se consegue explicar.

ISTOÉ – O que pode tê-la provocado?
Zuenir –
O americano Mark Kurlansky diz que nunca houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver. Foi uma contestação anárquica a tudo do passado – autoritarismo, família, política convencional, hierarquia, escola, tudo. Ao mesmo tempo os jovens cantavam a mesma música, deixavam o cabelo crescer e mudavam o comportamento sexual. A mulher foi se liberando em vários países, com sistemas distintos. A Primavera de Praga foi contra a União Soviética. Só os militares viam o mundo dividido em dois. Se você não era de um lado, era de outro.

ISTOÉ – Por que a luta pela igualdade social não mobiliza mais os jovens?
Zuenir –
É a grande questão de hoje. Acho que a decepção política levou esses jovens a uma descrença de tudo. São mais sensíveis à causa ecológica porque a social se mistura com a política e o jovem não quer saber de política. Em 68, até o sexo era um gesto político. Você jamais transaria com uma mulher reacionária. Tudo, inclusive a cultura, passava pela política. Outro problema é o individualismo, a preocupação muito mais consigo mesmo do que com o coletivo. Seria melhor uma geração furiosa do que apática. Essa anestesia é a pior coisa.


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