MEDITAÇÃO Antes da decisão, música clássica e palavras cruzadas

Começou pontualmente às 17 horas da sextafeira 13 de dezembro de 1968 a 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, sob o comando do presidente da República, marechal Arthur da Costa e Silva. Quando terminou, depois de duas horas e meia, a democracia estava enterrada no Brasil. Foi parido ali, no Salão de Despachos do segundo andar do Palácio Laranjeiras, o Ato Institucional n° 5. Às 22h30, em cadeia de tevê, o ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e o locutor Alberto Cury leram a introdução e os 12 artigos que compunham o AI-5 e também o Ato Complementar nº 38, que decretou o fechamento do Congresso por tempo indeterminado. Além de eliminar as garantias constitucionais da magistratura, o AI-5 trouxe em seu artigo 10 um dispositivo tenebroso: suspendeu a garantia de habeas-corpus "nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional" – mais tarde o prazo de incomunicabilidade dos presos foi ampliado para dez dias, o dobro do tempo que a coroa portuguesa permitia no caso da Inconfidência Mineira. Ao presidente da República, deuse o poder de cassar mandatos, suspender direitos políticos por dez anos, intervir nos Estados e municípios, demitir sumariamente funcionários públicos e militares e decretar o estado de sítio sem anuência do Congresso.

CARTA MARCADA O fechamento do Congresso era planejado havia meses

Registra a história contemporânea que o AI-5 foi a resposta virulenta dos militares à corajosa decisão da Câmara, no dia 12 de dezembro, de não dar licença para que o deputado Márcio Moreira Alves fosse processado perante o STF por grave ofensa às Forças Armadas. Assim que os militares de linha dura souberam da decisão parlamentar, dirigiram-se ao Palácio Laranjeiras para cobrar um revide enérgico do presidente da República. Ao ouvir a notícia no rádio do carro oficial, Costa e Silva desabafou ao chefe da Casa Militar, general Jayme Portella: "Eles vão ter resposta. Você é testemunha de que fiz tudo para que atendessem aos apelos para desagravar as Forças Armadas. Agora vão ver." Integrante da chamada linha dura, Portella gostou do que ouviu e determinou que se baixasse censura prévia nos órgãos de comunicação, proibindo comentários sobre a decisão da Câmara. Enquanto isso, Gama e Silva, o Gaminha, após tentar por todos os meios falar com o chefe, atendeu à recomendação de Portella e foi para o hotel dedicar-se ao rascunho do ato institucional. Mas, apesar de todas as pressões, o presidente recolheu-se aos seus aposentos e decidiu deixar a decisão para o dia seguinte. Ao ministro do Exército, Lira Tavares, ele disse: "Hoje, nada, Lira. Amanhã." Alheio às pressões dos colegas de farda, o presidente passou a noite ouvindo música clássica e fazendo palavras cruzadas. Dormiu mal e, logo ao acordar, ouviu do chefe do SNI, general Garrastazu Médici, o seguinte comentário: "O senhor não caiu durante a noite porque é o senhor. Outro no seu lugar teria caído."


IDENTIFICAÇÂO Como ministro, Costa e Silva já se aliava à linha dura

O marechal Costa e Silva sabia muito bem o que tinha de fazer para continuar na Presidência. Desde a marcha dos 100 Mil contra a ditadura, no fim de junho, os militares da linha dura cobravam uma ação enérgica. Gaminha não escondia que seu sonho era o fechamento do Congresso. Finalmente, era chegada a hora. Numa reunião preliminar, às 13 horas, o presidente comunicou suas decisões aos chefes militares, "em caráter sigiloso". Às 16 horas, foi examinado por seu médico e uma hora depois deu início à reunião do CSN. Com o presidente na cabeceira, sentaram-se à mesa 24 autoridades. Costa e Silva fez um pequeno discurso introdutório e retirou-se da sala por 15 minutos para que os conselheiros lessem a íntegra do AI-5. Quando voltou, deu a palavra ao vice-presidente da República, Pedro Aleixo, político liberal da UDN mineira. Aleixo defendeu um remédio constitucional – o estado de sítio – e atacou o conteúdo autoritário do AI-5. "Estaremos instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura", advertiu. Mas ficou por aí. "Em nenhum momento ele disse diretamente que condenava a promulgação do Ato", afirma o jornalista Elio Gaspari, no livro A ditadura envergonhada, primeiro dos quatro volumes que escreveu sobre o regime militar. Todos os outros presentes deram apoio ostensivo à medida de força. O jovem e ambicioso ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, achou pouco e pediu mais poderes para legislar sobre matéria econômica e tributária: "Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente." Porém, a frase que entrou para os anais como exemplo de oportunismo e vassalagem foi da lavra do ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva que surgira na política do Pará em 1964: "Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência."

Sem escrúpulos em relação à ditadura, o AI-5 foi aprovado por unanimidade, à exceção de Pedro Aleixo. "Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e dezoito dias", resumiu Gaspari, ao narrar a malfadada reunião. Tanto ele quanto Zuenir Ventura, autor de 1968, o ano que não terminou, com base nos depoimentos que colheram, concluíram que o episódio que envolveu Márcio Moreira Alves foi mero pretexto para a linha dura. "O discurso do Marcito não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo", afirmou Delfim Netto a Gaspari, em meados dos anos 80. Marcito pediu a palavra no pinga-fogo da Câmara, no dia 2 de setembro, para criticar a invasão da Universidade de Brasília por PMs e agentes do Dops em 29 de agosto. Ele acabara de assistir em São Paulo à peça Lisístrata, do grego Aristófanes, na qual a personagem principal incita as mulheres de Atenas a não se deitarem com seus maridos enquanto eles não pusessem fim à guerra contra Esparta. Inspirado no texto clássico, o deputado sugeriu uma greve feminina contra os militares durante as comemorações da Semana da Pátria. E perguntou: "Até quando o Exército vai ser valhacouto de torturadores?" No dia seguinte, só a Folha de S.Paulo publicou um pequeno registro num pé de página. A linha dura, entretanto, não perdeu tempo. Em poucas horas, foram distribuídas nos quartéis dezenas de cópias do texto. Nas palavras de Heráclito Sales, assessor de imprensa de Costa e Silva: "Foi como uma chuva sobre o Palácio. Uma chuva torrencial de telegramas de todas as guarnições militares, exigindo punição para o autor do discurso. Uma coisa organizada."

Poucos dias depois, o ministro do Exército, Lira Tavares, enviou ofício ao presidente Costa e Silva, dizendose "confiante nas providências que Vossa Excelência julga devam ser adotadas". Lira Tavares não chegou a pedir que Márcio Moreira Alves fosse processado. O processo saiu da cabeça do general Jayme Portella, que não cessou de alimentar a crise e de fomentar a indignação da tropa. Emparedado pelos ministros militares, Costa e Silva mandou que Gama e Silva estudasse uma fórmula jurídica para punir o parlamentar. Gaminha não pensou duas vezes: cabia ao governo pedir à Câmara licença para processar o deputado. Mas a Câmara sempre negara licença nas tentativas de processo por opinião e votos no exercício do mandato parlamentar. O Palácio, porém, não deu ouvidos ao presidente do partido governista, senador Daniel Krieger, que sugeriu a suspensão do colega. Gaminha se mexeu para assegurar a vitória na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O governo substituiu nove membros da CCJ para garantir a aprovação, mas teve de engolir a renúncia do presidente da Comissão, deputado Djalma Marinho. Citando o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca, Marinho disse uma frase que se transformou em palavra de ordem na Câmara: "Ao rei, tudo, menos a honra." No dia 12 de setembro de 1968, na votação do plenário, o governo perdeu feio. Foram 216 votos contra, 141 a favor e 12 em branco.

A truculenta resposta da ditadura militar veio no dia seguinte. Com o fim das garantias constitucionais, a linha dura ganhou, enfim, liberdade e autonomia para investir contra todos os que ainda acreditavam na volta da democracia. A razia começou na noite da sexta-feira 13. Censores ocuparam as redações dos principais jornais, as rádios e as emissoras de tevê. Vários políticos e intelectuais foram presos, entre eles, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, os escritores Antônio Callado e Carlos Heitor Cony, o poeta Ferreira Gullar, o editor Enio Silveira, o advogado Heleno Fragoso. Em São Paulo, os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil. Transferidos para o quartel da PE, no Rio, Caetano teve os cabelos raspados a zero. Carlos Lacerda chegou à cela na manhã do dia seguinte e, ao ser recebido com frieza pelo compositor comunista histórico Mário Lago, estendeu a mão: "Ô, Mário, preso fala um com o outro, não é?" Foram inúmeras as histórias de solidariedade e bravura nos primeiros dias do AI-5. Mas uma delas, contada por Zuenir, merece ser repetida. Em Goiânia, no sábado 14, às 19h30, o grande advogado Sobral Pinto aguardava, num quarto de hotel, a solenidade de formatura da qual seria paraninfo. Estava de chinelos, em manga de camisa e calça de pijama. O quarto foi invadido por um major e seis soldados. O major trombeteou: "Trago uma ordem do presidente Costa e Silva para o senhor me acompanhar." Destemido como sempre, Sobral retrucou: "Meu amigo, o marechal Costa e Silva pode dar ordens ao senhor. Ele é marechal, o senhor major. Mas eu sou paisano, sou civil. O presidente da República não manda no cidadão. Se esta é a ordem, então o senhor pode se retirar porque eu não vou." O militar, surpreso, gritou: "O senhor está preso!" Sobral respondeu: "Preso coisa nenhuma." Foi agarrado e arrastado pelo salão do hotel. Sobral tinha, então, 75 anos de idade.

O arrastão da linha dura também fez muitas baixas no meio acadêmico. O governo expulsou das universidades 66 professores, entre eles Caio Prado Júnior, Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes, a historiadora Maria Yedda Linhares, o físico Jayme Tiomno e o médico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que deixara uma posição no Instituto Pasteur, em Paris, pela Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. No Rio, não escaparam nem mesmo os catedráticos da Escola Nacional de Belas Artes Quirino Campofiorito e Mário Barata. Por força do AI-5, foram cassados os mandatos e suspensos os direitos políticos do deputado Márcio Moreira Alves e de vários outros parlamentares. Em janeiro de 1969, o balanço de políticos cassados era o seguinte: dois senadores, 28 deputados federais, 38 deputados estaduais e um vereador. Dois meses depois, mais 30 parlamentares vieram se juntar à lista de cassados e mais 100 pessoas tiveram os direitos políticos suspensos por dez anos.

A longa noite do AI-5 estava apenas começando. Os jovens envolvidos no movimento estudantil não enxergaram mais saída para o País, a não ser a luta armada. Enquanto o Partido Comunista Brasileiro liderava as passeatas estudantis com o bordão "Só o povo organizado derruba a ditadura", os militantes das organizações à esquerda do partidão bradavam: "Só o povo armado derruba a ditadura." Foram à luta revolucionária. Criticavam o pacifismo e a excessiva moderação do PCB e consideravam-se a vanguarda das forças populares. De certa maneira, fizeram lembrar os heróis criados pelo escritor Victor Hugo, no clássico Os miseráveis. Cercados pelo Exército francês nas rústicas barricadas de rua contra a monarquia, são informados que o povo não vai aderir. Resposta dos rebeldes de Paris: "Se o povo abandonou os republicanos, os republicanos não abandonam o povo." Abandonados pelo povo e pela classe média, os jovens de 1968 tornaram-se presa fácil. Assim que foi baixado o AI-5, "a tigrada", segundo termo cunhado por Delfim Netto, saiu a campo para destruir as organizações de esquerda. Gaspari estima que, no início de 1968, havia cerca de 800 militantes envolvidos com ações armadas. Fontes militares contam o dobro. Pelo levantamento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, mais de 250 desses militantes foram barbaramente torturados e assassinados pelos órgãos da repressão de 1969 a 1975. Eles não viram o AI-5 ser extinto em 31 de dezembro de 1978, mas não morreram em vão. Disse o psicanalista Helio Pellegrino, um pouco antes de morrer: "Nós aprendemos com a loucura, a generosidade e o sangue deles."