VANDRO/AJB

REPRESSÃO O Rio de Janeiro se tornou palco de batalhas campais

"Foi o melhor dos tempos e o pior dos tempos, a idade da sabedoria e da insensatez, a era da fé e da incredulidade, a primavera da esperança e o inverno do desespero. Tínhamos tudo e nada tínhamos.” As palavras que abrem o romance Conto de duas cidades, de Charles Dickens, falam da Europa do século XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, mas definem à perfeição as grandes expectativas e a encruzilhada vividas pela geração de 1968 no Brasil e no mundo. Naquele ano que para alguns não terminou e para a maioria terminou mal, o “poder jovem” tomou de assalto as ruas de Paris, Bonn, Roma, Praga, Washington, San Francisco, Cidade do México, Rio de Janeiro e São Paulo, entre outras. Sessenta e oito foi o ápice da geração baby boomer, nascida depois da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário de seus pais, esses jovens eram urbanos, desfrutavam do conforto trazido pela tecnologia, ouviam sons estridentes de rock’n roll, usavam cabelos e barbas compridos, minissaias, experimentavam drogas e, de posse da pílula anticoncepcio nal, forçaram a porta da revolução sexual. Mas eles queriam mais e, em 1968, se insurgiram em todos os cantos do planeta. Como um rastilho de pólvora, reivindicações estudantis se transformaram, da noite para o dia, em rebeliões contra governos, instituições, a Guerra do Vietnã e, por fim, toda a ordem vigente. “Sejamos realistas, exijamos o impossível”; “É proibido proibir”, diziam os slogans dos estudantes em Paris. No final, o establishment careta balançou, mas não caiu. Nos principais pontos da revolta, a velha ordem venceu “e o sinal ficou fechado para os jovens”: os conservadores ganharam as eleições na França, os tanques soviéticos acabaram com a Primavera de Praga e Richard Nixon foi eleito presidente dos EUA. Como consolo, 1968 deixou como herança o fim dos valores puritanos da sociedade do pós-guerra, com o advento de uma moral sexual menos repressiva. Às vésperas de 2008, o legado daquele ano grávido de utopias tragicamente abortadas permanece ainda desafinando o coro dos contentes e alimentando esperanças de um futuro menos sombrio.

LIDERANÇA Vladimir Palmeira agita as massas

No Brasil, 1968 foi um ponto de inflexão: o ano em que a ditadura militar instalada quatro anos antes começou a perder o apoio da classe média, paradoxalmente, seria o mesmo em que começaria a ganhar fôlego o chamado “milagre econômico brasileiro”. Vivíamos a efervescência no fio da navalha: o pau comia solto entre estudantes e a polícia nas ruas do Rio de Janeiro, num processo de radicalização crescente. “É preciso estar atento e forte; não temos tempo de temer a morte”, dizia a canção. A rebelião se espraiava pelo front cultural, com o Cinema Novo e a Tropicália, passando pelo Grupo Opinião. Perto disso, a irreverência da Jovem Guarda não passava de uma doença infantil. E, enquanto nos Festivais da Canção se travavam batalhas entre os “engajados” e os “alienados”, os “desbundados” esperavam a Era de Aquarius. Toda essa agitação político-cultural terminaria em 13 de dezembro com o AI-5, que jogaria o País nas trevas e empurraria muitos jovens para a luta armada.

FOTOS: EVANDRO TEIXEIRA

CONFRONTO A classe média se volta contra a ditadura

 

A violência, aliás, foi a parteira de 1968. E no Brasil ela seria anunciada simbolicamente, como uma premonição, no plano estético. Logo em janeiro, o diretor José Celso Martinez Correa estreou uma revolucionária montagem da peça Roda viva, de Chico Buarque de Hollanda. Era uma história quase banal, de um artista popular que se vê enredado pela sociedade de consumo e entrega sua carreira a um empresário inescrupuloso, que o transforma em ícone pop, mas também o leva à destruição e ao suicídio. Como vendera a alma ao diabo, seu fígado era destroçado em público. Nas mãos de Zé Celso, a peça inaugurou o “teatro da porrada”, com cenas picantes envolvendo assédio à Virgem por um anjo e até por Jesus, com direito a distribuição de fígado de boi à platéia. Nas palavras de Zuenir Ventura, “talvez nunca – nem antes nem depois – os palcos nacionais tenham assistido a uma explosão visual, sonora e gestual tão virulenta como esta que inaugurou no Brasil o ‘Teatro da agressão’ ou ‘Teatro da grossura’. A peça não só agredia o público – intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente, conforme queria o próprio diretor – como contestava todas as formas e propostas artísticas anteriores”. Messiânico, Zé Celso dizia que “é preciso provocar o espectador, chamá-lo de burro, recalcado, reacionário”. Ele queria uma guerra contra “a cultura oficial, de consumo fácil”. E, como que antevendo o que viria depois na arena política, arrematava: “É a emergência de uma arte brasileira violenta, o sinal que antecede as grandes revoluções nos campos social e político. E todo mundo tem medo da arte que se fará agora no País. Pois ela será esmagadora, perigosa.”

AGÊNCIA JB

PIVÔ Por causa de “Caminhando”, de Vandré, Tom Jobim foi vaiado

A violência real explodiria pouco depois nas ruas do Rio de Janeiro. Na quinta-feira 28 de março de 1968, soldados do Batalhão de Choque da PM invadiram o restaurante Calabouço para reprimir um protesto de estudantes secundaristas. O Choque respondeu à bala as pedras dos estudantes. Em frente ao restaurante, caiu morto o jovem Edson Luís Lima Souto, 20 anos, aluno do curso de madureza, que viera de Belém para tentar uma faculdade no Rio de Janeiro. Revoltados, os estudantes carregaram o corpo de Edson Luís em passeata até o prédio da Assembléia Legislativa (hoje Câmara Municipal). No dia seguinte, cerca de 20 mil pessoas, entre estudantes, artistas e intelectuais acompanharam o enterro de Edson Luís até o cemitério São João Batista aos gritos de “Abaixo a ditadura!” e “O povo organizado derruba a ditadura!”

Depois disso, ocorreram novas passeatas, reprimidas com violência. Acuada, a ditadura mostrava os dentes. O dia 21 de junho passaria à História como a Sexta-feira Sangrenta, a jornada mais violenta de confrontos de rua entre policiais e estudantes. Desta vez, como lembra Elio Gaspari em A ditadura envergonhada, “os jovens não eram secundaristas anônimos (…). Eram os dourados filhos da elite”. A eles se juntaram populares e trabalhadores. A polícia, por sua vez, tinha ordens para atirar. Durante cerca de dez horas, o centro do Rio assistiu a uma violenta batalha campal, com estudantes enfrentando a tropa de choque a pau e pedra e populares jogando do alto dos edifícios vasos de flores, tijolos, cadeiras e até uma máquina de escrever. No final, 23 pessoas foram baleadas, quatro mortas – inclusive um soldado da PM atingido por um tijolo – e 35 soldados feridos.

FOLHA IMAGEM

DERROTA 920 estudantes presos no 30º Congresso da UNE

“A classe média acompanhava o conflito bastante emocionada, porque seus filhos estavam envolvidos e correndo grande perigo”, escreve o jornalista Fritz Utzeri no prefácio do livro 68: destinos. Passeata dos 100 mil, do fotógrafo Evandro Teixeira (a ser lançado em 2008). “Nasciam ali as condições de uma grande manifestação de protesto e repúdio à ditadura”: a Passeata dos 100 Mil. Ela aconteceu na quarta- feira 26 de junho e, desta vez, com a polícia ausente, não houve incidentes. “A multidão começou a mover-se, cantando o hino que seria o favorito da esquerda e da luta armada, o da Independência, principalmente a estrofe: ‘Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil’. O Hino Nacional havia sido apropriado pelos militares”, diz Utzeri. “A Marcha dos 100 Mil foi o troco da Marcha da Família, com a qual, quatro anos antes, a classe média expressou seu apoio ao golpe. A roda da história girava e o governo, pela primeira vez, estava na defensiva.”

Foi o apogeu da mobilização estudantil. A partir daí, o movimento cometeu uma série de erros políticos, foi perdendo o apoio da classe média e entrou em descenso. Parte dos estudantes já se inclinava para a luta armada, organizada por grupos de extrema-esquerda. Ainda em junho, um grupo da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) atacou com bombas o quartel do II Exército em São Paulo, matando o soldado Mário Kozel Filho. No mês seguinte, outra organização, o Comando de Libertação Nacional (Colina), matou no Rio de Janeiro o major alemão Edward von Westernhagen, confundido com o capitão boliviano Gary Prado, comandante da tropa que prendera Che Guevara em 1967. E, em agosto, outro comando da VPR assassinou em São Paulo o capitão americano Charles Chandler. Do outro lado, começaram as ações de grupos paramilitares de extrema-direita, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), patrocinado pelos porões do regime. Bombas foram colocadas em teatros do Rio de Janeiro e de São Paulo. No dia 17 de julho, membros do CCC invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, onde era encenada Roda viva. Os artistas foram agredidos, entre eles Marília Pêra, obrigada a passar nua por um corredor polonês.

A anarquia chegava aos quartéis. No dia 1º de outubro, o deputado Marílio Ferreira Lima (MDB-PE) denunciou no plenário da Câmara a descoberta de um sinistro plano terrorista da direita militar. Oficiais da Aeronáutica liderados pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier planejavam usar o Para-Sar, uma unidade de pára-quedistas de salvamento na selva, para seqüestrar líderes de oposição e praticar atentados terroristas no Rio. A culpa seria lançada sobre grupos da esquerda armada, fornecendo justificativa para os ultras darem a última volta no parafuso no regime. O plano foi abortado pela ação do capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como “Sérgio Macaco”, que o denunciou aos seus superiores. O caso foi levado até o brigadeiro Eduardo Gomes, herói da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana de 1922 e patrono da Aeronáutica, que apoiou o capitão Sérgio Macaco. O inquérito aberto na FAB foi arquivado e seu relator, o brigadeiro Itamar Rocha, exonerado do cargo de diretor-geral das Rotas Aéreas e preso por alguns dias. E o capitão Sérgio, expulso da Aeronáutica.

Enquanto isso, o movimento estudantil continuava em queda livre, mas cada vez mais radicalizado. Em agosto, os campi da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Brasília foram invadidos pela polícia. Em 2 de outubro, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na época localizada na rua Maria Antônia, em frente à Universidade Mackenzie – reduto dos estudantes conservadores –, foi atacada pelo CCC. No tumulto, morreu um estudante. Em outubro, a polícia paulista descobriu que o 30º Congresso da UNE estava sendo realizado clandestinamente num sítio em Ibiúna, em São Paulo, e prendeu 920 estudantes, entre eles os líderes Vladimir Palmeira, Luís Travassos e José Dirceu.

A radicalização também chegou às platéias dos festivais. “Na última semana de setembro, o III Festival Internacional da Canção transformou a intolerância em espetáculo e a exibiu para todo o País – ao vivo e ao som de vaias”, conta Zuenir Ventura. Na noite de 28 de setembro, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo, dúzias de ovos, tomates e bolas de papel impediram que Caetano Veloso cantasse É proibido proibir. Fiel à estrofe que dizia “eu digo não ao não”, Caetano reagiu com um discurso irado, mas perfunctório: “Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada (…) Mas que juventude é essa, que juventude é essa? Vocês são iguais sabe a quem? Àqueles que foram ao Roda viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! (…) Se vocês, se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!”

Mas não adiantou nada, absolutamente nada. Dias depois, quando o júri anunciou a vitória de Sabiá, um de seus autores, ninguém menos que Tom Jobim, apareceu no palco e foi sonoramente vaiado durante 23 minutos. A platéia do Maracanãzinho não se conformava com o fato de que sua preferida, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, ficasse em segundo lugar. Era uma guarânia, mas que tinha versos fortes que mexiam com o Zeitgeist (espírito da época) do público, falando em “soldados armados, amados ou não/quase todos perdidos de armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam antigas lições/De morrer pela pátria e viver sem razões”. E arrematando com o refrão: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” O secretário de Segurança Pública do Rio, general Luís França, proibiu a música sob a alegação de que ela serviria de slogan para a agitação das ruas. Vandré, que não compactuava com a intolerância do público, pagaria caro por “Caminhando”: depois do AI-5, foi preso, exilado e, quando voltou, em 1973, fez um mea-culpa que até hoje ninguém entendeu. Anos depois, Millôr Fernandes definiria Caminhando: “É o hino nacional perfeito; nasceu no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, pelo maior número de pessoas. É a nossa Marselhesa.”

A longa noite dos generais só terminaria em 1985, depois de um sinuoso processo de transição negociada – e não de ruptura, como queriam muitos dos protagonistas de 1968. Alguns deles, sobreviventes daqueles tempos sombrios, chegaram ao poder décadas depois, como o ex-deputado José Dirceu e o ministro Franklin Martins. Quarenta anos depois, pode-se dizer que o legado daquele ano que quis mudar tudo foi, principalmente, o singelo apreço por valores como a democracia e a defesa dos direitos humanos – valores esses que não estavam necessariamente inscritos no DNA das rebeliões daquele ano. Foi preciso que fizéssemos a dura travessia do deserto dos “anos de chumbo” para aprender a lição. Como lembra o jornalista Cid Benjamin, que era estudante de engenharia da UFRJ e um dos vice-presidentes da União Metropolitana de Estudantes (UME): “A maioria dos jovens daquela época não tinha na cabeça a defesa da democracia. A marca daquele tempo foi mesmo a rebeldia.” Para Benjamin, que participou da luta armada pelo MR-8, foi preso e banido em 1970, o consenso em torno da democracia se fortalece em sociedade onde houve ditadura. “É o tipo de coisa a que só damos importância quando perdemos.” Mesmo com suas imperfeições, como a corrupção e o tráfico de influência. “A democracia não é solução para tudo, tem os seus problemas. Mas a falta dela é pior que tudo isso”, conclui o jornalista. “Acho que existe uma ligação profunda entre 68 e o apreço que o brasileiro demonstra ter pela democracia, contra as tiranias”, diz Arthur José Poerner, autor de O poder jovem. “O espírito de 68 está presente em toda a nossa opção pela democracia hoje”, conclui.